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COTIDIANO IMAGINÁRIO
Vício secreto
MOACYR SCLIAR
Depois de vários assaltos,
ela decidiu que estava na hora de mudar de vida. De nada
adianta, dizia, andar de carro
de luxo e morar em palacete
se isso serve apenas para
atrair assaltantes. De modo
que comprou um automóvel
usado, mudou-se para um
apartamento menor e até começou a evitar os restaurantes da moda.
Tudo isso resultou em inesperada economia e criou um
problema: o que fazer com o
dinheiro que ela já não gastava? Aplicar na Bolsa de Valores parecia-lhe uma solução
temerária; não poucos tinham
perdido muito dinheiro de
uma hora para outra -quase
como se fosse um assalto. Outras aplicações também não a
atraíam. De modo que passou
a comprar aquilo de que mais
gostava: jóias. Sobretudo relógios caros. Multiplicavam-se
os Bulgan, os Breitling, os Rolex. Já que o tempo tem de
passar, dizia, quero vê-lo passar num relógio de luxo.
E aí veio a questão; onde
usar todas essas jóias? Na rua,
nem pensar. Em festas? Tanta
gente desconhecida vai a festas, não seria impossível que
ali também houvesse um assaltante, ou pelo menos alguém capaz de ser tentado a
um roubo ao ter a visão de um
Breitling. Sua paranóia cresceu, e lá pelas tantas desconfiava até de seus familiares.
De modo que decidiu: só usa
as jóias quando está absolutamente só.
Uma vez por semana tranca-se no quarto, abre o cofre,
tira as jóias e as vai colocando: os colares, os anéis, os braceletes -os relógios, claro, os
relógios. E admira-se longamente no espelho, murmurando: que tesouros eu tenho, que
tesouros.
O que lhe dá muito prazer.
Melhor: lhe dava muito prazer. Porque ultimamente há
algo que a incomoda. É o
olhar no rosto que vê no espelho. Há uma expressão naquele olhar, uma expressão de sinistra cobiça que não lhe
agrada nada, nada.
O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção
baseado em notícias publicadas no jornal
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