São Paulo, domingo, 05 de fevereiro de 2006

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Quando eles nasceram, a internet já existia; para a geração que começa a chegar à idade adulta, a tecnologia é uma extensão do próprio cérebro

Os www babies

DÉBORA YURI
DA REVISTA DA FOLHA

Você, como boa parte da humanidade, não se cansa de dar vivas diários à existência do e-mail ("Putz!, como facilita a vida...") e é habitué das salas de bate-papo? Vive lembrando como era a vida antes da internet e dando graças aos céus por esse "novo mundo", especialmente por estar sintonizado com ele? Você é certamente um "imigrante digital": aculturado, talvez até fluente no idioma praticado, mas constantemente desmascarado pelo sotaque.
Os verdadeiros "nativos digitais" costumam achar e-mail um porre. É burocrático, restritivo, demora para ser enviado e mais ainda para ser respondido. Já os "chats" são "impessoais", dizem, você mal sabe com quem está falando. Para eles, internet discada e orelhões poderiam ser expostos num museu, ao lado do MS-DOS -o sistema operacional que, em cerca de 25 anos, virou um dinossauro cibernético.
Eles são parte da primeira geração que nasceu, cresceu e está chegando à fase adulta no mundo computadorizado, dos games da infância à socialização virtual na adolescência. É nele que definem suas vidas escolar, social, amorosa -e até a familiar. Não imaginam o mundo de outro jeito.
"Os nativos tendem a ver a tecnologia como uma amiga e uma extensão de seu cérebro, enquanto os imigrantes a encaram como uma ferramenta que eles precisam dominar", compara o educador americano Marc Prensky, 59, responsável pelo conceito de "nativos e imigrantes digitais". Os primeiros, fluentes no novo idioma, a tecnologia digital. Já os segundos... "A metáfora me soou real quando percebi que os "imigrantes digitais" têm um sotaque, um pé nas raízes do passado, como imprimir seus e-mails e não ir automaticamente à internet para procurar uma informação", diz.
Usando a música pop como ilustrativo, os avós dos "nativos" aguardavam na porta das lojas por cada novo vinil dos Beatles; os pais contavam os dias para comprar um CD do Guns N'Roses. Eles, em compensação, nem precisam sair de casa para pôr as mãos no álbum da banda-sensação inglesa Arctic Monkeys: baixam as faixas no micro.
O fenômeno Arctic Monkeys, aliás, é exemplar dessa mudança. Seu primeiro CD, "Whatever People Say I Am, That's What I'm Not", tornou-se, no domingo passado, o disco de estréia mais vendido de toda a história do Reino Unido. Graças à web, o quarteto tinha hits cantarolados em todos os cantos antes mesmo de seu primeiro álbum chegar às lojas.

Fosso
Apavorados talvez seja exagero, mas não há dúvida de que a tecnologia ajuda a cavar mais fundo a imagem do fosso entre as gerações. "Existe muita incompreensão", diz Prensky. Os "imigrantes" não crêem em relações exclusivamente digitais: ligam para saber se fulano recebeu um e-mail e pensam só no lado perigoso.
Os imigrantes chiam, mas tentam se adequar. "A internet acaba com o convívio familiar; meu filho chega em casa e vai direto pra frente da telinha", conta a aposentada Meire Riederer, 57. "Para conseguir falar com ele, resolvi aderir. Do meu quarto, eu entro no MSN (programa que permite trocar mensagens on line) e converso com o Rudolf no quarto dele, nós dois dentro da mesma casa. A ponto de eu escrever: "Filho, vamos descer para jantar?'".
Situação familiar absurda? Não hoje em dia. "Não adianta ir falar com ele no quarto dele, porque está sempre concentrado na tela. E, mesmo no MSN, se fico muito tempo puxando papo, ele logo "fala': "Mãe, tchau, estou conversando com outras pessoas"."
Rudolf Andreas, 15, relata que fica "o tempo todo conectado, em casa ou na escola, no recreio". Ele leva na mochila seu palmtop recheado de músicas. Seu colégio, o Santo Américo, no Morumbi, instalou uma rede wi-fi (sem fio), tecnologia que permite conectar a internet de qualquer lugar do campus. "Faço pesquisas e anotações na escola e mando para casa, reservo livros na biblioteca sem precisar sair do lugar".
A ferramenta número um dessa moçada é o MSN. O Orkut é outra arma popularíssima. Os blogs aglutinam gente com interesses parecidos, o que facilmente caminha para algo mais. Por fim, vem o celular, geralmente com câmera, e o recurso campeão na hora de passar uma cantada -o SMS, ou torpedo. Não à toa, muitos adolescentes gastam mais dinheiro digitando ferozmente torpedos açucarados/apimentados do que com a conta telefônica em si.
Tudo (ou quase tudo) é feito via web. "Meu atual namorado é um antigo amigo de escola que me achou no Orkut, aí fomos para o MSN, daí para o celular e, no fim, "ao vivo". Estou com ele há seis meses", conta Bárbara Guimarães Weiss Rodrigues, 19, que fica conectada "o dia e a noite inteiros".

Bloquear a gosto
Rudolf explica a preferência: "Você "pega" na hora. Se quer qualquer coisa com a menina, pede o MSN dela. É mais fácil conversar por ele, não dá aquele medo de travar a voz, você se solta mais", explica ele. Há outra vantagem: é possível bloquear os indesejáveis, dizer que está on-line mas ocupado e conversar só com quem interessa no momento.
Alguns "imigrantes" se aproveitam das vantagens tecnológicas. "Tem um lado meio "Big Brother" na internet. Se quero saber da vida da minha filha, entro no Orkut dela. Os amigos fizeram até uma comunidade para ela, e um dos tópicos era "Gente, que nota vocês dão para o beijo da Carol?". Que vergonha eu senti!", conta a empresária Luciana Juhas, 32, mãe de Carolina Juhas Bezerra, 15.
Quando está trabalhando, a assistente administrativa Marilene Simões da Silva, 27, entra no MSN "por causa" da filha, Bruna, 9. "Às vezes, ela me chama pra contar que brigou com a avó. É só meu corpo que não está presente", brinca a mãe.
Para as gêmeas Giovanna e Gabriela Faria, 9, o celebrado programa tem função familiar fundamental: elas se comunicam com a mãe, que trabalha e vive no Japão há mais de oito anos, dessa forma. "Não sinto tanta saudade porque falo com ela e a vejo todo dia", conta Giovanna. "A gente usa MSN, microfone e câmera", completa a irmã.
Nesses oito anos, Jacqueline Faria, 32, só veio ao Brasil cinco vezes. "É difícil ver minhas filhas crescendo pelo computador, mas ao menos temos esse meio de comunicação rápido e razoavelmente barato. A vida aqui é muito corrida", conta a mãe, que trabalha num bar de Nagahama e há três anos vê as garotas pela tela.

Cérebro novo
No mundo dos "imigrantes", a lista de críticas ao mundo virtual também é longa: os jovens usam linguagem errada ("kem", "aki", bjus" e similares piores), a rede tem pornografia, permite o acesso a gente desconhecida e perigosa, há outras mil e uma coisas para distrair da lição de casa...
"Tudo depende da maneira como o computador é usado e, se os pais e as escolas continuarem a ignorá-lo ou acusá-lo, mais e mais crianças aprenderão a mexer nele com propósitos errados", diz o educador americano Seymour Papert, 77, pesquisador do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts) e idealizador dos laptops a US$ 100, projeto que a Organização das Nações Unidas declarou apoiar no último Fórum Mundial de Davos. Papert diz que a tecnologia afeta positivamente o avanço intelectual das crianças.
E há mais uma vantagem do mundo virtual, a tecla que todo mundo gostaria de transportar para a vida real: a do "undo", aquela que permite desfazer as bobagens que se fez.


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