São Paulo, quinta, 5 de março de 1998

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INCULTA & BELA
"Meio" e "bastantes"

PASQUALE CIPRO NETO
Colunista da Folha

Com a publicação do endereço eletrônico (o chamado e-mail) desta coluna, chovem mensagens dos leitores, com dúvidas e mais dúvidas. Aos poucos, vamos comentá-las e tentar resolvê-las.
Uma dúvida que muitos apresentaram diz respeito à bendita palavra "bastantes". Existe ou não existe esse monstrinho? Num de meus programas na TV Cultura, uma repórter perguntou isso ao povo. Entre as tantas respostas, destaca-se a de um rapaz, que disse que o plural é inútil, porque, "afinal, se é bastante, já é muito, não é necessário o plural".
É normal que o significado de uma palavra leve o falante a confundir-se quanto ao seu emprego gramatical. É clássico o caso de meio e meia. Se se diz "meia hora", por que não se diz "meia cansada"?
Há um motivo gramatical para isso. Hora é substantivo; cansada é adjetivo. Palavra que modifica substantivo varia (muito arroz, muita carne, muitos dias, muitas horas, meio ano, meia hora). Palavra que modifica adjetivo não varia (muito cansado, muito cansada, muito cansados, muito cansadas, meio cansada, meio cansadas).
Mas o que se vê na prática não é o respeito a esse princípio da gramática normativa. O povo gosta mesmo é de dizer "ela está meia nervosa". E até entre autores clássicos é possível encontrar um ou outro exemplo de desobediência a essa norma.
No caso específico de "bastante", o problema básico é um só: não estamos acostumados a ouvir essa palavra no plural ("bastantes"), por isso ela nos soa esquisita, para não dizer errada.
A palavra "bastante" é da mesma família do verbo "bastar". Ao pé da letra, bastante é o que basta, o suficiente: "Não há livros suficientes/Não há livros bastantes"; "O país não dispõe de recursos suficientes/O país não dispõe de recursos bastantes".
Paralelamente, "bastante" também assumiu o sentido de "muito, numeroso". Assim, deve sofrer as mesmas flexões que sofre a palavra "muito", ou seja, quando for possível usar "muitos" ou "muitas", deve-se usar "bastantes": "O time perdeu muitas oportunidades/O time perdeu bastantes oportunidades"; "O jornal tem muitos leitores/O jornal tem bastantes leitores".
E é aí que a roda pega. No Brasil, ninguém diz que o time perdeu "bastantes oportunidades". Se um jogador de futebol disser algo semelhante, muita gente vai chamá-lo de analfabeto etc.
Se um dia você assistir a um programa da RTP (Rádio e Televisão Portuguesa), vai notar que em Portugal essa flexão é dita sem cerimônia, até por jogadores de futebol.
O que fazer então? Usar o bom senso. Se você quiser empregar a palavra "bastante" respeitando a norma gramatical, deve fazer as flexões.
Mas não exagere, nem saia por aí dizendo que eu disse o que não disse. Nada de "Elas estão bastantes nervosas". Não é possível substituir esse "bastantes" por "muitas". Ninguém diria "Elas estão muitas nervosas".
Resumo da história: na língua portuguesa, registra-se, sim, o emprego da palavra "bastantes", substituível por muitos, muitas, suficientes.


Pasquale Cipro Neto escreve nesta coluna às quintas-feiras

E-mail: inculta@uol.com.br



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