São Paulo, segunda-feira, 05 de julho de 2004

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MOACYR SCLIAR

Viajar é preciso

Um iate passou o final de semana encalhado em Diadema (Grande São Paulo). Ao ser transportado, o caminhão que o conduzia atolou na entrada do local. Cotidiano, 9.jun.2004

O iate encalhado -um barco com 30 metros de comprimento- despertou curiosidade, e uma pequena multidão se reuniu no local, porém ao anoitecer todos tinham se dispersado. Foi então que eles apareceram.
"Eles" eram o Zeca, o Fuinha, o Cobra. Os três costumavam vagar pelas redondezas durante o dia; à noite dormiam no terreno até então baldio e que agora estava ocupado pelo iate.
De início ficaram perplexos, sem saber o que fazer. Pensaram em procurar outro lugar para dormir. Mas isso não seria justo. Por muitos anos haviam sido os únicos ocupantes do local, do qual se consideravam até meio donos. Agora estava ali o enorme barco, praticamente expulsando-os. Contudo, o fato poderia ser considerado até providencial: de repente, tinham um lugar para dormir, um lugar abrigado e até confortável. Com toda a cautela, cuidando para não despertar o vigia que dormitava na cabine do caminhão que fizera o transporte, entraram no iate. E ficaram maravilhados com o que viram: a espaçosa cabine, com várias camas confortáveis, a cozinha muito bem aparelhada, a sala de estar... O lar que nunca haviam tido estava ali, à disposição deles, ao menos por aquela noite.
E não se tratava só de abrigo, tratava-se de um desafio à imaginação, àquela altura devidamente estimulada pelo uísque que tinham encontrado num armário e do qual se serviam generosamente. Se a gente tivesse um barco desses, disse o Fuinha, a gente poderia viajar pelo mundo todo, conhecer muitos lugares. E por que, perguntou o Zeca, a gente não faz de conta que está viajando?
Era uma boa idéia. A primeira coisa a fazer seria escolher o capitão, o que gerou uma discussão acalorada: os três queriam o posto. Mas o Cobra recorreu a um argumento imbatível: filho de marinheiro, dizia ter as viagens marítimas no sangue. Além disso, conhecia o nome de vários portos pelos quais o pai havia passado. Assumiu o posto, nomeando os outros dois contramestres.
Viajaram muito, naquela noite. Primeiro dirigiram-se para o Rio, depois para Salvador e Recife; sempre subindo, chegaram ao Caribe, aquelas ilhas maravilhosas em meio a um oceano sempre azul. Dali seguiram para a Flórida, onde tiveram uma discussão: Zeca queria voltar, Fuinha achava que deveriam continuar, rumo à Europa, que sempre almejara conhecer. O capitão Cobra apoiou-o. Já estavam quase chegando ao porto de Marselha, na França, quando foram interrompidos: era o vigia, que finalmente acordara e que expulsou-os dali. Eu disse que esta viagem estava ficando longa demais, ponderou o Zeca. Ele já avisou que, da próxima vez, só fará este trajeto por via aérea. Estão aguardando que um avião faça um pouso forçado no terreno.


Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.


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