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MOACYR SCLIAR
Viajar é preciso
Um iate passou o final de semana
encalhado em Diadema (Grande
São Paulo). Ao ser transportado, o
caminhão que o conduzia atolou na
entrada do local. Cotidiano,
9.jun.2004
O iate encalhado -um barco com 30 metros de comprimento- despertou curiosidade, e
uma pequena multidão se reuniu
no local, porém ao anoitecer todos tinham se dispersado. Foi então que eles apareceram.
"Eles" eram o Zeca, o Fuinha, o
Cobra. Os três costumavam vagar
pelas redondezas durante o dia; à
noite dormiam no terreno até então baldio e que agora estava ocupado pelo iate.
De início ficaram perplexos,
sem saber o que fazer. Pensaram
em procurar outro lugar para
dormir. Mas isso não seria justo.
Por muitos anos haviam sido os
únicos ocupantes do local, do
qual se consideravam até meio
donos. Agora estava ali o enorme
barco, praticamente expulsando-os. Contudo, o fato poderia ser
considerado até providencial: de
repente, tinham um lugar para
dormir, um lugar abrigado e até
confortável. Com toda a cautela,
cuidando para não despertar o
vigia que dormitava na cabine do
caminhão que fizera o transporte,
entraram no iate. E ficaram maravilhados com o que viram: a espaçosa cabine, com várias camas
confortáveis, a cozinha muito
bem aparelhada, a sala de estar...
O lar que nunca haviam tido estava ali, à disposição deles, ao
menos por aquela noite.
E não se tratava só de abrigo,
tratava-se de um desafio à imaginação, àquela altura devidamente estimulada pelo uísque que tinham encontrado num armário e
do qual se serviam generosamente. Se a gente tivesse um barco
desses, disse o Fuinha, a gente poderia viajar pelo mundo todo, conhecer muitos lugares. E por que,
perguntou o Zeca, a gente não faz
de conta que está viajando?
Era uma boa idéia. A primeira
coisa a fazer seria escolher o capitão, o que gerou uma discussão
acalorada: os três queriam o posto. Mas o Cobra recorreu a um argumento imbatível: filho de marinheiro, dizia ter as viagens marítimas no sangue. Além disso, conhecia o nome de vários portos
pelos quais o pai havia passado.
Assumiu o posto, nomeando os
outros dois contramestres.
Viajaram muito, naquela noite.
Primeiro dirigiram-se para o Rio,
depois para Salvador e Recife;
sempre subindo, chegaram ao
Caribe, aquelas ilhas maravilhosas em meio a um oceano sempre
azul. Dali seguiram para a Flórida, onde tiveram uma discussão:
Zeca queria voltar, Fuinha achava que deveriam continuar, rumo
à Europa, que sempre almejara
conhecer. O capitão Cobra
apoiou-o. Já estavam quase chegando ao porto de Marselha, na
França, quando foram interrompidos: era o vigia, que finalmente
acordara e que expulsou-os dali.
Eu disse que esta viagem estava
ficando longa demais, ponderou
o Zeca. Ele já avisou que, da próxima vez, só fará este trajeto por
via aérea. Estão aguardando que
um avião faça um pouso forçado
no terreno.
Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às
segundas-feiras, um texto de ficção baseado em matérias publicadas no jornal.
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