São Paulo, domingo, 05 de setembro de 2004

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DANUZA LEÃO

Sem passado

Ela estava casada havia muito tempo. Vinte e cinco anos, 30? Por aí.
Além de uma paixão, foi uma teimosia, dessas que as mulheres inventam às vezes. Foi -e é- muito feliz, só que tem horas que a vida complica.
Naquele dia, por exemplo.
Não foi a primeira vez nem a décima, mas daquela vez, particularmente, a coisa ficou incômoda. Ela pegou a agenda, ligou para antigas amizades que não via havia muito tempo, e também para aquele ex; ligou assim, pra nada.
Mulher é inocente, sempre liga para nada.
Aí, aconteceram vários acasos: o número de telefone era o mesmo, e ele, como estava meio desocupado, atendeu logo. E o maior de todos os acasos: ele devia estar se sentindo meio só, pois aquele telefonema, naquele dia, naquela hora, foi quase como um milagre.
A conversa rendeu; ele disse tudo que ela, sem saber, queria ouvir. Que se lembrava como se fosse hoje do vestido que ela usava no último encontro, que nunca a tinha esquecido. Ela, que não sabia muito bem por que tinha ligado, ficou meio desconcertada, bancou a meio distante -afinal, era casada-, mas gostou; gostou, e muito. Ele disse que no próximo mês estaria na cidade onde ela mora, quem sabe se veriam, quem sabe um almoço? Ela deixou as coisas meio no ar -é, quem sabe? Nessas horas, nunca se imagina que o futuro chegue.
Foi ficando nervosa, sem saber o que fazer, sem saber direito o que estava sentindo e também sem querer, por nada desse mundo, perder aquela chance.
Mas chance de quê?
De quê? De ter um homem desejando ardentemente estar com ela, mais do que qualquer coisa no mundo, um homem que, entre um copo de vinho e outro, passasse a mão nas suas pernas, deixando claro que iriam para um motel depois, sem nem perguntar se ela queria ou podia. Há quantos séculos não ia a um motel, meu Deus? Ah, como seria bom se sentir de novo com 35 anos.
E viajou; viajou como nos bons tempos em que um encontro desses era a coisa mais importante do mundo. Passou horas pensando na roupa que ia usar, decidiu por uma saia abotoada na frente, lembrando do quanto elas facilitam as coisas, e pegou, lá no fundo do armário, aquele sapato de salto bem alto que havia anos não usava. Ficou um tempo enorme pensando se ia passar rímel ou não. Se fosse só para almoçar, sim, mas se o almoço tivesse algum desdobramento o rimel podia escorrer, o que seria patético.
Pensou em quase tudo; só se esqueceu de que 30 anos se haviam passado e que ele talvez tivesse se transformado num senhor; um senhor certamente charmoso, mas sem aquela urgência de arrastar uma mulher para o motel depois do almoço.
Ela prefere não pensar que 30 anos se passaram para ela também, e sabe que tem que ficar atenta. Se, por um certo constrangimento inicial, começar a falar de netos, aí não vai dar. O tema é lindo, mas não combina com amor nem com sexo.
Imagina-se voltando para casa meio de pilequinho, se equilibrando no salto alto, já sem ilusões -e só Deus sabe o quanto estava precisando de alguma, de qualquer uma.
Pensa que é melhor cair na real; naquela noite vai passar a mão na cabeça do marido, carinhosamente, dizer que está sem sono e que vai para o quarto mais tarde, para poder sonhar.
E pensa mais: que se estiver mesmo desatinada, precisando desesperadamente de um homem que a deseje desesperadamente, mandam a sabedoria e a experiência que invente um desconhecido que não saiba nada da vida dela.
Nem o nome.

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