São Paulo, Sexta-feira, 05 de Novembro de 1999
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Crimes da cultura do mal-estar

CONTARDO CALLIGARIS

O que aconteceu quarta-feira no cine Morumbi é um crime de nossa cultura.
Nos próximos dias, as explicações do acontecido culparão as drogas ou as armas. Ou evocarão problemas pessoais de Mateus da Costa Meira. Essas são três causas sobre as quais temos a ilusão de poder intervir.
Podemos exigir o fim do tráfico de drogas e o controle das armas. Para a patologia do rapaz também podemos pedir prevenção futura. Dormiremos tranquilos, por lidarmos com as causas do crime: regulamentando as armas, reprimindo o tráfico, prevenindo abusos de crianças. Isto é, tranquilos até o próximo assassinato.
Fica de lado o que é mais difícil admitir: existe e é operante um modelo de explosão assassina específica à cultura ocidental contemporânea. Nos EUA, a frequência está se tornando epidêmica. Por medo de encorajar a emulação, a imprensa americana passou a empurrar esses crimes para as páginas internas.
Mas o modelo não é só americano, ele é da cultura ocidental de hoje: só nesta semana, Alemanha e, agora, Brasil.
Quais são os traços da série que chega até o Morumbi?
Os assassinos são todos rapazes e homens jovens de classe média. São, em suma, os sujeitos para quem nossa cultura pede sem parar: "agora, mostrem de que são capazes". Eles estão no gênero e na hora de se tornar alguém. É neles, sobretudo nos adolescentes, que bate a novidade patológica de nossa cultura. Todas as civilizações produzem algum mal-estar, mas a nossa é a única que está fundada no mal-estar. Se sentir inadequado, sofrer com a distância entre nós e os ideais culturais é indispensável para o funcionamento social. Sem esse mal-estar cotidiano, nosso mundo pararia.
Ora, os assassinos da série pertencem ao grupo do qual mais se exige que se afirme e portanto ao qual se reserva o maior mal-estar.
As vítimas são escolhidas ao acaso. São representantes dos "outros", dos olhares para quem é preciso mostrar serviço. Mas os crimes acontecem em lugares relacionados com a inadaptação dos assassinos. Eles saem atirando onde se sentiram mal reconhecidos, mal amados. O leque vai da própria casa até a escola e o trabalho. Mateus aperfeiçoou: escolheu o lugar da inadequação universal, o cinema, onde todos medimos nossa distância dos ideais da tela.
A cultura quer que mostremos do que somos capazes? Pois é, "nós vamos mostrar para eles", respondem os assassinos. Exasperados pelas exigências de uma sociedade organizada pelas aparências, eles respondem mostrando sobretudo que não são de brincadeira. Nisso também Mateus inova. Matar no meio de um filme é um jeito de dizer que ele faz melhor que se parecer com os ideais da tela: ele mata de verdade.
A escolha do filme não é casual. "Clube de Luta" propõe justamente uma saída do mal-estar cultural pela violência e pelo fascismo. E não me digam que é ficção etc. Se o cinema não influencia nosso comportamento, quem o faz: os tratados de ética do século 17?

E-mail: ccalligari@uol.com.br




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