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ALÉM DO MURO
Estudo mostra que opção pela segurança privada e pelos lares-prisão desvaloriza o espaço público e acirra conflitos
Livro traça um perfil das prisões urbanas
EDNEY CIELICI DIAS
COORDENADOR-ADJUNTO DO
PROGRAMA DE QUALIDADE
O muro que protege é também a
barreira que ressalta diferenças e
acirra conflitos. Teresa Pires do
Rio Caldeira, professora do Departamento de Antropologia da
Universidade da Califórnia, campus de Irvine, aponta as limitações das grades urbanas.
"Onde se conseguiu reduzir o
crime e recriar uma boa qualidade de vida, isso não se deu construindo muros e desrespeitando
direitos. Foi exatamente criando
condições de respeito e justiça e
melhorando o espaço público."
No livro que lança hoje ("Cidade de Muros - Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo"), a
antropóloga diz que não se pode
mais entender São Paulo como
uma cidade em que os ricos moram no centro e a população pobre na periferia, como nos anos
70. Trata-se de uma realidade
mais complexa, em que a segregação social está cristalizada nos
condomínios fechados, nos shopping centers, nas casas que mais
parecem prisões -o que ela chama de enclaves fortificados. As
pessoas se enclausuram, e o espaço público fica relegado a segundo plano tanto pelo governo como pelos cidadãos.
Para a antropóloga, é necessário
recuperar o que é público, como
ruas, praças e parques. "A tolerância zero funcionou em Nova
York porque não tolerou a privatização do espaço público e o desrespeito aos direitos. Controle da
violência não é questão de força,
mas de direitos."
Teresa Caldeira, quando está
em São Paulo, mora em um prédio cuja entrada tem dois
portões de segurança.
Folha - O paulistano é, antes de
tudo, um encarcerado?
Teresa Pires do Rio Caldeira - O
paulistano, hoje em dia, sente que
está protegido se estiver bastante
murado. Qualquer construção da
cidade é protegida por grade ou
por muro. Está todo mundo fechado. Todo mundo tem medo
do crime, mas há vários medos
que são protegidos por muros.
Folha - A sociedade urbana caminha para o abandono do espaço público e para o muramento?
Teresa Caldeira - Eu não diria
que qualquer cidade está indo pelo caminho da fortificação. Existe
uma tendência bastante acentuada, que pode ser percebida em cidades diferentes, de enfatizar a
privatização e o abandono do espaço público. Isso pode ser visto
tanto em Los Angeles como em
São Paulo ou Buenos Aires.
Em lugares diferentes, as pessoas acham que estão seguras se
estiverem protegidas privadamente. Há descrédito da segurança pública e da possibilidade da
vida pública. Acredita-se que a solução privada vá garantir não só
segurança mas também uma qualidade de vida melhor.
Folha - O livro mostra que, para
entender os problemas urbanos de
São Paulo, não basta analisar a
oposição centro-periferia. Por quê?
Teresa Caldeira - A oposição
centro-periferia ensinou a pensar
as desigualdades sociais de um
certo jeito. Os ricos moravam no
centro, e os pobres, na periferia.
Isso já não é tão verdade como era
nos anos 70. Hoje ricos moram no
que era periferia, em condomínios fechados, e você tem pobres
no centro ou os sem-teto debaixo
do Minhocão. Você tem uma proximidade da pobreza que não
existia até os anos 80.
Folha - Pode-se atribuir a descrença na solução pública a um pânico provocado pela violência?
Teresa Caldeira - A violência é
parte da cena. Há cidades com
menor violência que têm o mesmo processo de encarceramento
verificado em cidades mais violentas. Nos EUA, o crime é menor,
a polícia é mais eficiente, e as pessoas não têm o medo da polícia
que há aqui. Mas o processo, em
alguns lugares, é mais acentuado
do que o existente em São Paulo.
Há contextos sociais em que se
vê o aumento dos muros. Um dos
principais contextos é o de mudança política. Na África do Sul, o
fim do apartheid causou um
abandono dos centros antigos e a
mudança da classe média para
enclaves fortificados. Na Europa
do leste, isso também aconteceu.
Na América Latina, isso se dá na
democratização, após os processos de abertura política. A construção de muros coincide com o
aumento da violência. Dessa maneira, parece que só o crime fez a
transformação, quando na verdade há processos de transformação
social. No contexto de mudança,
surgem os enclausuramentos.
Folha - Há uma descrença generalizada com relação à segurança pública, ao bem-estar social promovido pela ação pública?
Teresa Caldeira - O que está por
trás disso é a descrença em uma
ordem pública heterogênea, em
que você vai conviver com pessoas que são completamente diferentes de você. É o abandono da
noção de que todos têm de viver
juntos em uma ordem pública para todos. Cria-se a noção de que
basta cuidar do próprio quintal,
você e seus amigos. Dessa maneira, está-se abandonando o que é
público e democrático.
Folha - Como a ação individual é
quixotesca, pois é arriscado renunciar aos muros, qual a recomendação para o governo? Qual a recomendação para a prefeita eleita de
São Paulo, Marta Suplicy?
Teresa Caldeira - Primeira: não
autorizar o fechamento de ruas. É
preciso criar condições de proteger e valorizar o espaço público.
Um local limpo e agradável tende
a ser preservado.
A tolerância zero, com a qual o
crime diminuiu nos EUA, é interpretada de maneira um pouco
simplista no Brasil. Não é só questão de prender o menino que risca
o muro, pois não se tolera nenhum crime. O outro lado da
questão é que o espaço público é
preservado. Você limpa as ruas,
você reconstrói calçadas. Cria-se
um espaço agradável.
Todo mundo pensa em construir espaço público para rico,
não para pobre. Se você consegue
criar espaços públicos de qualidade na periferia, há uma dinâmica
social bem mais interessante.
Folha - Quem se apropria do espaço público? Os sem-teto? Ou
quem fecha a rua?
Teresa Caldeira - Há várias apropriações privadas do espaço público. Quem o privatiza é seguramente quem fecha a rua, quem
coloca guarita na calçada.
Em certo sentido, os sem-teto
privatizam o espaço público, pois
o usam para fins privados -dormir, viver. Mas quem impede o
movimento é quem mais privatiza. Uma das principais funções do
espaço público moderno é permitir a liberdade de circulação.
Livro: "Cidade de Muros - Crime,
Segregação e Cidadania em São Paulo"
Autor: Teresa Pires do Rio Caldeira
Editora: 34 e Edusp
Quanto: R$ 32 (400 págs.)
Lançamento: Hoje, na livraria
Argumento Livre, rua Armando
Penteado, 44, Higienópolis
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