São Paulo, terça-feira, 05 de dezembro de 2000

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ALÉM DO MURO

Estudo mostra que opção pela segurança privada e pelos lares-prisão desvaloriza o espaço público e acirra conflitos

Livro traça um perfil das prisões urbanas

EDNEY CIELICI DIAS
COORDENADOR-ADJUNTO DO
PROGRAMA DE QUALIDADE


O muro que protege é também a barreira que ressalta diferenças e acirra conflitos. Teresa Pires do Rio Caldeira, professora do Departamento de Antropologia da Universidade da Califórnia, campus de Irvine, aponta as limitações das grades urbanas.
"Onde se conseguiu reduzir o crime e recriar uma boa qualidade de vida, isso não se deu construindo muros e desrespeitando direitos. Foi exatamente criando condições de respeito e justiça e melhorando o espaço público."
No livro que lança hoje ("Cidade de Muros - Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo"), a antropóloga diz que não se pode mais entender São Paulo como uma cidade em que os ricos moram no centro e a população pobre na periferia, como nos anos 70. Trata-se de uma realidade mais complexa, em que a segregação social está cristalizada nos condomínios fechados, nos shopping centers, nas casas que mais parecem prisões -o que ela chama de enclaves fortificados. As pessoas se enclausuram, e o espaço público fica relegado a segundo plano tanto pelo governo como pelos cidadãos.
Para a antropóloga, é necessário recuperar o que é público, como ruas, praças e parques. "A tolerância zero funcionou em Nova York porque não tolerou a privatização do espaço público e o desrespeito aos direitos. Controle da violência não é questão de força, mas de direitos."
Teresa Caldeira, quando está em São Paulo, mora em um prédio cuja entrada tem dois portões de segurança.


Folha - O paulistano é, antes de tudo, um encarcerado?
Teresa Pires do Rio Caldeira -
O paulistano, hoje em dia, sente que está protegido se estiver bastante murado. Qualquer construção da cidade é protegida por grade ou por muro. Está todo mundo fechado. Todo mundo tem medo do crime, mas há vários medos que são protegidos por muros.

Folha - A sociedade urbana caminha para o abandono do espaço público e para o muramento?
Teresa Caldeira -
Eu não diria que qualquer cidade está indo pelo caminho da fortificação. Existe uma tendência bastante acentuada, que pode ser percebida em cidades diferentes, de enfatizar a privatização e o abandono do espaço público. Isso pode ser visto tanto em Los Angeles como em São Paulo ou Buenos Aires.
Em lugares diferentes, as pessoas acham que estão seguras se estiverem protegidas privadamente. Há descrédito da segurança pública e da possibilidade da vida pública. Acredita-se que a solução privada vá garantir não só segurança mas também uma qualidade de vida melhor.

Folha - O livro mostra que, para entender os problemas urbanos de São Paulo, não basta analisar a oposição centro-periferia. Por quê?
Teresa Caldeira -
A oposição centro-periferia ensinou a pensar as desigualdades sociais de um certo jeito. Os ricos moravam no centro, e os pobres, na periferia. Isso já não é tão verdade como era nos anos 70. Hoje ricos moram no que era periferia, em condomínios fechados, e você tem pobres no centro ou os sem-teto debaixo do Minhocão. Você tem uma proximidade da pobreza que não existia até os anos 80.

Folha - Pode-se atribuir a descrença na solução pública a um pânico provocado pela violência?
Teresa Caldeira -
A violência é parte da cena. Há cidades com menor violência que têm o mesmo processo de encarceramento verificado em cidades mais violentas. Nos EUA, o crime é menor, a polícia é mais eficiente, e as pessoas não têm o medo da polícia que há aqui. Mas o processo, em alguns lugares, é mais acentuado do que o existente em São Paulo.
Há contextos sociais em que se vê o aumento dos muros. Um dos principais contextos é o de mudança política. Na África do Sul, o fim do apartheid causou um abandono dos centros antigos e a mudança da classe média para enclaves fortificados. Na Europa do leste, isso também aconteceu.
Na América Latina, isso se dá na democratização, após os processos de abertura política. A construção de muros coincide com o aumento da violência. Dessa maneira, parece que só o crime fez a transformação, quando na verdade há processos de transformação social. No contexto de mudança, surgem os enclausuramentos.

Folha - Há uma descrença generalizada com relação à segurança pública, ao bem-estar social promovido pela ação pública?
Teresa Caldeira -
O que está por trás disso é a descrença em uma ordem pública heterogênea, em que você vai conviver com pessoas que são completamente diferentes de você. É o abandono da noção de que todos têm de viver juntos em uma ordem pública para todos. Cria-se a noção de que basta cuidar do próprio quintal, você e seus amigos. Dessa maneira, está-se abandonando o que é público e democrático.

Folha - Como a ação individual é quixotesca, pois é arriscado renunciar aos muros, qual a recomendação para o governo? Qual a recomendação para a prefeita eleita de São Paulo, Marta Suplicy?
Teresa Caldeira -
Primeira: não autorizar o fechamento de ruas. É preciso criar condições de proteger e valorizar o espaço público. Um local limpo e agradável tende a ser preservado.
A tolerância zero, com a qual o crime diminuiu nos EUA, é interpretada de maneira um pouco simplista no Brasil. Não é só questão de prender o menino que risca o muro, pois não se tolera nenhum crime. O outro lado da questão é que o espaço público é preservado. Você limpa as ruas, você reconstrói calçadas. Cria-se um espaço agradável.
Todo mundo pensa em construir espaço público para rico, não para pobre. Se você consegue criar espaços públicos de qualidade na periferia, há uma dinâmica social bem mais interessante.

Folha - Quem se apropria do espaço público? Os sem-teto? Ou quem fecha a rua?
Teresa Caldeira -
Há várias apropriações privadas do espaço público. Quem o privatiza é seguramente quem fecha a rua, quem coloca guarita na calçada.
Em certo sentido, os sem-teto privatizam o espaço público, pois o usam para fins privados -dormir, viver. Mas quem impede o movimento é quem mais privatiza. Uma das principais funções do espaço público moderno é permitir a liberdade de circulação.


Livro: "Cidade de Muros - Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo"
Autor: Teresa Pires do Rio Caldeira
Editora: 34 e Edusp
Quanto: R$ 32 (400 págs.)
Lançamento: Hoje, na livraria Argumento Livre, rua Armando Penteado, 44, Higienópolis






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