São Paulo, terça-feira, 05 de dezembro de 2006

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MARIA INÊS DOLCI

Fábula moderna


João, 43, é pai de três filhos. Pós-graduado, tinha um bom emprego, até que foi demitido e se viu atolado em dívidas


JOÃO É engenheiro, 43 anos, com pós-graduação nos Estados Unidos. É casado, tem três filhos, e sua esposa é microempresária, dona de uma pequena floricultura. Até 2005, a renda familiar era invejável, nesse Brasil de salários ridículos: R$ 15 mil. Após a mordida do Imposto de Renda, as escolas dos três filhos, os planos de saúde e outros gastos fixos, ainda sobrava dinheiro para as férias anuais e para o lazer do final de semana.
Não eram ricos, porque dependiam exclusivamente do salário (dele) e das vendas da floricultura (dela).
A vida não é um conto de fadas. A empresa para a qual João trabalhava começou a perder mercado para sua concorrente chinesa, que vendia seus produtos aqui no Brasil, sem a pesada carga tributária, valorização da moeda e outras características de nossa economia.
A empresa resolveu demitir todos os empregados do segundo e terceiro escalões que ganhassem acima de um teto estabelecido por um gênio de consultoria. João perdeu o emprego.
O Fundo de Garantia havia sido utilizado para quitar a casa própria, que vale R$ 600 mil. Portanto, ao receber a indenização e um plano de benefícios, poderia manter seu padrão de vida por uns seis meses. Não tinha muito dinheiro investido, porque um irmão havia quebrado a cara nos negócios, e, para evitar que a família dele pagasse por isso, emprestou todas suas reservas, praticamente a fundo perdido.
Com a troca de seu carro por um mais simples, assegurou as contas mais urgentes do ano. Mas a procura por um novo emprego esbarrava na triste realidade do país: há poucas vagas para quem passou dos 40 anos, e 2/3 dos empregos criados nos últimos anos pagam até dois salários mínimos.
Há uns cinco anos, prevendo as dificuldades da empresa e o desfecho do caso, resolveu preparar uma opção de trabalho. Começou a investir em uma pequena fábrica em sociedade com amigos. Deram-se mal, muito mal. E ele ficou com uma dívida impagável.
Obviamente, o banco preferiu processá-lo, de olho no imóvel, a renegociar os débitos a taxas menos extorsivas.
Resultado: perdeu em primeira instância. E leu que foi aprovada uma lei, no Senado, que está para ser sancionada pelo presidente da República, que permite até a penhora do imóvel residencial, se estiver avaliado em mais de R$ 350 mil, para o pagamento de dívidas.
Ele não deve a uma loja de bairro ou a um condomínio, e sim a megabanco. Não tem emprego nem perspectivas de conseguir recolocação em curto prazo. Não é caloteiro, embora admita que não tem tino comercial.
O que questionamos, com essa fábula que poderia ser real, não é a promulgação de uma lei para acelerar o pagamento de dívidas. É que essa lei somente vise ao devedor, sem que fixe, por exemplo, tetos para juros e correção, que transformam a dívida em uma montanha impagável de dinheiro.
Só um caso como esse já justificaria o veto do presidente Lula a essa lei que, novamente, faz a balança pender para o lado do mais forte.

NA INTERNET - http://mariainesdolci.folha.blog.uol.com.br


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