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Passe é a moeda no mundo das peruas
AURELIANO BIANCARELLI
da Reportagem Local
Os passageiros da Kombi 83,
que no final da tarde de anteontem fazia a linha Itaquera-Iguatemi, viajaram os 11 quilômetros calados. Prestavam atenção ao rádio
PX, que informa sobre os movimentos da polícia e da fiscalização. "Eles estavam vindo pela Pires do Rio, agora desviaram para
A.E.Carvalho", tranquiliza o motorista Marcelo Quartucci, 24, citando bairros e avenidas da zona
leste. "Dessa nós escapamos."
Oito horas antes, na zona sul,
três passageiros tinham morrido
num acidente quando o perueiro
tentava fugir da fiscalização.
"Todo mundo aqui está preparado", diz Quartucci. "Se a fiscalização aparecer, eles saem correndo para um lado e eu, para outro."
A ordem é fugir. Com a perua
apreendida, o motorista ficará
sem trabalho, terá que pagar mais
de R$ 4.000 em multas e perderá o
carro se estiver alienado.
No terminal Itaquera do metrô,
em apenas dois dias -quarta e
quinta-feira-, os fiscais apreenderam 25 das 45 peruas da linha
Guaianazes. No início da noite de
anteontem, a fila de passageiros se
estendia por mais de cem metros.
"Até quando vão perseguir a
gente?", perguntava Joventina
Souza, 52, que só usa as peruas
para levar o neto à escola.
A guerra já dura tanto tempo
que os perueiros criaram estratégias próprias para escapar dos fiscais. Uma pequena frota de motos
e carros de passeio segue discretamente os fiscais e a guarda municipal, informando seus movimentos. Cada perueiro dá dois passes
(vale-transporte) por dia para
manter esse esquema de "olheiros". Cada área tem seu informante. Em Santana, na zona norte, é o "Mário Covas" que controla o movimento dos "maria-bonita", como os fiscais são chamados. Todo dia de manhã, ele está
com seu carro próximo ao portão
da SPTrans, no Pari, de onde
saem os fiscais. É chamado de Covas por se parecer com o governador. E porque no universo clandestino dos perueiros as pessoas
não têm nome, têm apelido: Rapidinho, Pernalonga, Macarrão, Pirata...
Cada região tem bases de rádio
operando em diferentes faixas.
Em Artur Alvim é o canal 35, em
Itaquera, o 30. No Jabaquara, o 4.
Os poucos perueiros que não têm
PX são informados por sinais por
aqueles que vêm na direção contrária. "Eles notam que a gente
não tem antena e cuidam de avisar", diz João Almeida Barros, 26,
que trabalha com a mulher Katia,
20, mãe de trigêmeos. Juntos, fazem seis viagens por dia entre Itaquera e Castro Alves.
Dentre as quase 20 mil peruas
que circulam pela capital, eram
legalizadas menos de 3.000.
Na organização própria que os
perueiros criaram, ter ou não ter
licença não faz diferença. As regras são as mesmas. Cada linha
tem um itinerário próprio, um
determinado número de carros e
um fiscal que controla a partida.
Perueiro novo que tenta "atravessar" uma linha está colocando
a vida e o carro em risco. Melhor
comprar uma "vaga", que pode
custar de R$ 6.000 a R$ 20 mil. É
raro encontrar quem venda.
Há as linhas ricas e as pobres.
Na zona sul, as irmãs Adriana, 27,
e Denise dos Santos, 18, trabalham das 6h às 23h para ganhar
menos de R$ 100 diários na linha
Largo 13-Jardim dos Reis. Adriana é a motorista, Denise, a "cobrinha", como são chamados os cobradores. Na linha Jabaquara-Praça do Acuri, Pedro Agostinho,
44, tem que contar com a filha
Nilva, 17, como "cobrinha", para
ganhar R$ 60 por dia. Nos horários de pico, Nilma viaja no "chiqueirinho" da Kombi, saltando a
cada vez que um passageiro sobe
ou desce.
Na zona norte, as 33 peruas que
fazem a linha metrô Tucuruvi-Campo Limpo, na divisa com
Guarulhos, saem a cada cinco minutos e não dão conta. Campo
Limpo é uma área de ocupação
onde ônibus não chega. Antonio
Cândido, 35, um metalúrgico desempregado, começou na linha
com uma Kombi 78, passou para
uma Topic 98 e hoje tem uma Iveco, que lhe custou R$ 53 mil.
Estima-se que o negócio das peruas empregue mais de 50 mil
pessoas só em São Paulo. Muitos
perueiros dividem o dia em dois
turnos, o que ocupa dois motoristas e dois cobradores. Cada linha
tem um fiscal, que também faz as
vezes de "chamador", a pessoa
que fica anunciando o itinerário e
a saída das peruas.
Em Itaquera, Cindia Freire Bergamaschi, 18, trocou a função de
"cobrinha" pelo cargo de "fiscal-chamadora". Com os cabelos curtos oxigenados, Cindia trabalha
desde os 10 anos em lotações. Na
quinta-feira, brigou com fiscais
da SPTrans que apreendiam as
peruas. "Um deles disse que na
zona eu ganharia mais." Ela ganha um passe por perua que parte. "Dá uns 25 por dia", diz.
O passe -ou vale-transporte-
é a moeda do universo das peruas.
Passageiro paga com passe, "cobrinha" recebe em passes, "olheiro" ganha em passes. Depois são
transformados em dinheiro por
cobradores e motoristas das empresas de ônibus, que acabam ganhando com essa operação clandestina.
Mercedes-Benz Sprinter do
ano, com 16 lugares, cobram R$ 1,
o mesmo que velhas Kombis onde se apertam às vezes 13 pessoas.
Algumas vans, como a Hyundai
de Roberto Coelho da Silva, 23,
oferecem seleção musical. Na
quinta-feira, seus passageiros na
linha Eldorado-Santo Amaro ouviam Iron Maiden. "Perueiro só
gosta de pagode, pois isso tem
passageiro que me espera só para
curtir um rock", diz.
No geral, as peruas são mais
ágeis e rodam com mais frequência que os ônibus nos horários de
pico. Mas desaparecem da maioria das linhas depois das 21h.
Na disputa por passageiros,
muitos "cobrinhas" ficam em pé,
junto da porta aberta, anunciando o roteiro. Passageiro desce onde pedir, mesmo no meio do trânsito engarrafado.
"Só queremos ser legalizados e
reconhecidos" diz o estudante de
direito Ricardo Narciso Cardoso,
25, que faz a linha Santana-Lapa.
"Estamos dispostos a pagar impostos e seguir as regras."
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