São Paulo, #!L#Domingo, 06 de Fevereiro de 2000


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Passe é a moeda no mundo das peruas


AURELIANO BIANCARELLI
da Reportagem Local

Os passageiros da Kombi 83, que no final da tarde de anteontem fazia a linha Itaquera-Iguatemi, viajaram os 11 quilômetros calados. Prestavam atenção ao rádio PX, que informa sobre os movimentos da polícia e da fiscalização. "Eles estavam vindo pela Pires do Rio, agora desviaram para A.E.Carvalho", tranquiliza o motorista Marcelo Quartucci, 24, citando bairros e avenidas da zona leste. "Dessa nós escapamos."
Oito horas antes, na zona sul, três passageiros tinham morrido num acidente quando o perueiro tentava fugir da fiscalização.
"Todo mundo aqui está preparado", diz Quartucci. "Se a fiscalização aparecer, eles saem correndo para um lado e eu, para outro." A ordem é fugir. Com a perua apreendida, o motorista ficará sem trabalho, terá que pagar mais de R$ 4.000 em multas e perderá o carro se estiver alienado.
No terminal Itaquera do metrô, em apenas dois dias -quarta e quinta-feira-, os fiscais apreenderam 25 das 45 peruas da linha Guaianazes. No início da noite de anteontem, a fila de passageiros se estendia por mais de cem metros.
"Até quando vão perseguir a gente?", perguntava Joventina Souza, 52, que só usa as peruas para levar o neto à escola.
A guerra já dura tanto tempo que os perueiros criaram estratégias próprias para escapar dos fiscais. Uma pequena frota de motos e carros de passeio segue discretamente os fiscais e a guarda municipal, informando seus movimentos. Cada perueiro dá dois passes (vale-transporte) por dia para manter esse esquema de "olheiros". Cada área tem seu informante. Em Santana, na zona norte, é o "Mário Covas" que controla o movimento dos "maria-bonita", como os fiscais são chamados. Todo dia de manhã, ele está com seu carro próximo ao portão da SPTrans, no Pari, de onde saem os fiscais. É chamado de Covas por se parecer com o governador. E porque no universo clandestino dos perueiros as pessoas não têm nome, têm apelido: Rapidinho, Pernalonga, Macarrão, Pirata...
Cada região tem bases de rádio operando em diferentes faixas. Em Artur Alvim é o canal 35, em Itaquera, o 30. No Jabaquara, o 4. Os poucos perueiros que não têm PX são informados por sinais por aqueles que vêm na direção contrária. "Eles notam que a gente não tem antena e cuidam de avisar", diz João Almeida Barros, 26, que trabalha com a mulher Katia, 20, mãe de trigêmeos. Juntos, fazem seis viagens por dia entre Itaquera e Castro Alves.
Dentre as quase 20 mil peruas que circulam pela capital, eram legalizadas menos de 3.000.
Na organização própria que os perueiros criaram, ter ou não ter licença não faz diferença. As regras são as mesmas. Cada linha tem um itinerário próprio, um determinado número de carros e um fiscal que controla a partida.
Perueiro novo que tenta "atravessar" uma linha está colocando a vida e o carro em risco. Melhor comprar uma "vaga", que pode custar de R$ 6.000 a R$ 20 mil. É raro encontrar quem venda.
Há as linhas ricas e as pobres. Na zona sul, as irmãs Adriana, 27, e Denise dos Santos, 18, trabalham das 6h às 23h para ganhar menos de R$ 100 diários na linha Largo 13-Jardim dos Reis. Adriana é a motorista, Denise, a "cobrinha", como são chamados os cobradores. Na linha Jabaquara-Praça do Acuri, Pedro Agostinho, 44, tem que contar com a filha Nilva, 17, como "cobrinha", para ganhar R$ 60 por dia. Nos horários de pico, Nilma viaja no "chiqueirinho" da Kombi, saltando a cada vez que um passageiro sobe ou desce.
Na zona norte, as 33 peruas que fazem a linha metrô Tucuruvi-Campo Limpo, na divisa com Guarulhos, saem a cada cinco minutos e não dão conta. Campo Limpo é uma área de ocupação onde ônibus não chega. Antonio Cândido, 35, um metalúrgico desempregado, começou na linha com uma Kombi 78, passou para uma Topic 98 e hoje tem uma Iveco, que lhe custou R$ 53 mil.
Estima-se que o negócio das peruas empregue mais de 50 mil pessoas só em São Paulo. Muitos perueiros dividem o dia em dois turnos, o que ocupa dois motoristas e dois cobradores. Cada linha tem um fiscal, que também faz as vezes de "chamador", a pessoa que fica anunciando o itinerário e a saída das peruas.
Em Itaquera, Cindia Freire Bergamaschi, 18, trocou a função de "cobrinha" pelo cargo de "fiscal-chamadora". Com os cabelos curtos oxigenados, Cindia trabalha desde os 10 anos em lotações. Na quinta-feira, brigou com fiscais da SPTrans que apreendiam as peruas. "Um deles disse que na zona eu ganharia mais." Ela ganha um passe por perua que parte. "Dá uns 25 por dia", diz.
O passe -ou vale-transporte- é a moeda do universo das peruas. Passageiro paga com passe, "cobrinha" recebe em passes, "olheiro" ganha em passes. Depois são transformados em dinheiro por cobradores e motoristas das empresas de ônibus, que acabam ganhando com essa operação clandestina.
Mercedes-Benz Sprinter do ano, com 16 lugares, cobram R$ 1, o mesmo que velhas Kombis onde se apertam às vezes 13 pessoas. Algumas vans, como a Hyundai de Roberto Coelho da Silva, 23, oferecem seleção musical. Na quinta-feira, seus passageiros na linha Eldorado-Santo Amaro ouviam Iron Maiden. "Perueiro só gosta de pagode, pois isso tem passageiro que me espera só para curtir um rock", diz.
No geral, as peruas são mais ágeis e rodam com mais frequência que os ônibus nos horários de pico. Mas desaparecem da maioria das linhas depois das 21h.
Na disputa por passageiros, muitos "cobrinhas" ficam em pé, junto da porta aberta, anunciando o roteiro. Passageiro desce onde pedir, mesmo no meio do trânsito engarrafado.
"Só queremos ser legalizados e reconhecidos" diz o estudante de direito Ricardo Narciso Cardoso, 25, que faz a linha Santana-Lapa. "Estamos dispostos a pagar impostos e seguir as regras."


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