São Paulo, sábado, 07 de fevereiro de 2004

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LETRAS JURÍDICAS

Reprodução assistida chegou ao código

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

O Código Civil de 2002 reconheceu, no artigo 1.597, os efeitos da reprodução assistida, que a ciência criou, para preencher falhas da reprodução clássica pela relação sexual do homem com a mulher. O reconhecimento da gravidez produzida em laboratório seguiu-se a muitos anos de experiência para chegar, na segunda metade do século 20, ao primeiro "bebê de proveta". Embora adjetivada de "assistida", a gestação criada em clínica de reprodução também é natural, a contar do momento da transferência do embrião para o útero. A relação sexual foi dispensada, mas a gravidez, a gestação, o parto (ou o eventual abortamento) são iguais ao que sempre foram.
A reprodução assistida se impôs ao Direito. Sobrepôs-se a velhas tradições sociais e religiosas. O catolicismo ainda sustenta que a relação sexual deve destinar-se apenas à reprodução, mas não tem explicação aceita pela maioria para quando ela não se submeta a esse limite. As críticas feitas no Ocidente cristão à gravidez em laboratório tiveram contra elas o argumento de que Jesus não nasceu do contato físico entre seus pais, José e Maria. Todavia, mesmo contornada a crítica de origem religiosa, a reprodução assistida ocasionou problemas jurídicos, que o Código Civil tenta resolver em parte. A codificação de 2002, na melhor tradição do Direito brasileiro, presume concebidos (até prova cabal em contrário) na constância do casamento os filhos nascidos 180 dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência dos esposos ou até 300 dias após o fim da sociedade conjugal -por morte, separação judicial, nulidade ou anulação do casamento.
A filiação passou a ser, desde 2003, reconhecida nos casos de inseminação artificial homóloga (o espermatozóide e o óvulo são fornecidos pelos cônjuges ou companheiros) e heteróloga (o espermatozóide e o óvulo podem ser fornecidos por pessoas estranhas a um ou a ambos os componentes do casal). A fecundação homóloga da esposa, quando devidamente comprovada, permite reconhecimento da filiação mesmo de marido falecido.
As questões ético-jurídicas surgidas agora contrastam com a realidade da sabedoria milenar, segundo a qual a mãe é sempre certa e o pai é sempre incerto. Sem falar nas freqüentes trocas de bebês, com o ventre de aluguel, até a mãe passou a ser incerta, porque ainda se discute a maternidade da que gestou o embrião ou de quem deu o óvulo para formá-lo. Outra matéria ético-jurídica é a da legitimidade da filiação se o espermatozóide utilizado em laboratório não for o do marido ou companheiro, com ou sem a concordância expressa dele. O marido concordante terá a obrigação de aceitar a paternidade no primeiro caso, mas não no segundo. Digo concordância expressa, por escrito, sem a menor dúvida quanto à assinatura, ante a importância de que o acordo do homem constitua ato jurídico perfeito e acabado e, uma vez registrado, seja irrevogável. A prova testemunhal, mesmo sendo legalmente aceitável, é tão sujeita a variáveis que se pode considerar fraco amparo para matéria tão importante. A filiação é assunto sério demais para ficar sujeita a alternativas de humor dos que participam da reprodução assistida, admitindo ou negando o reconhecimento. Se a reprodução natural, pelo método clássico, suscita problemas, será fácil calcular a magnitude destes na reprodução assistida. O tema é tão importante que terei de voltar a ele, tentando adivinhar o futuro na aplicação do novo código.


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