São Paulo, quinta-feira, 08 de março de 2001

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COMPORTAMENTO

Especialista diz que morte de personalidades é chance de entrar em contato com ritual privado, às vezes reprimido

Luto coletivo permite tristeza sem censura

AURELIANO BIANCARELLI
KÁTIA STRINGUETO

DA REPORTAGEM LOCAL
A morte do governador Mário Covas fez São Paulo e o país vivenciarem o sentimento mais genuíno que o ser humano é capaz de sentir, o luto. Com um adicional: num luto coletivo é permitido demonstrar a tristeza sem censura. Muita gente chorou em público nos últimos dois dias.
Especialistas afirmam que a morte de personalidades conhecidas e admiradas pelo grande público permite que as pessoas que não "elaboraram" seus próprios lutos venham a fazê-lo.
É um momento de reviver as perdas pessoais, extravasar emoções abafadas. "Tomamos emprestado um pouco desse luto para chorar as nossas dores", diz a psicóloga Maria Helena Pereira Franco, coordenadora do Lelu (Laboratório de Estudos e Intervenção sobre o Luto), da PUC.
Mesmo sem perceber, o luto coletivo é uma chance para entrar em contato com o luto privado, muitas vezes reprimido por uma espécie de defesa pessoal ou até por mudanças da sociedade atual que tornaram os rituais de despedida mais curtos e superficiais.
"O prejuízo disso é semelhante ao de não poder expressar o sentimento", diz a psicóloga Maria Júlia Kovacs, coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte do Instituto de Psicologia da USP. Segundo ela, pesquisas inglesas recentes mostram que quem não demonstra as emoções acaba sofrendo manifestações físicas no futuro.
Em tese, recuperar um pouco do ritual pode ajudar. O ritual tem uma função terapêutica. "Ele resgata a solidariedade, principalmente numa cidade como São Paulo, onde é cada um por si a maior parte do tempo", diz Maria Júlia. Por ter um roteiro conhecido -o enlutado sabe o que fazer e o que esperar- a cerimônia também ajuda a retomar o equilíbrio.
Viver o luto, por mais dolorido que seja, é também um momento de crescimento e lapidação humana. "A morte é um evento maior e tem o poder de alterar o cotidiano", diz Maria Júlia. "Crenças cristalizadas são submetidas a uma nova avaliação."
Os especialistas acreditam que os momentos de luto são importantes para a revisão de certas posturas diante da vida. "Se você vinha num processo de conduta de risco, achava que podia ir numa festa, beber muito e continuar dirigindo, quando alguém querido morre num acidente, você se identifica. E tem a chance de perceber que a vida tem valor", diz.
A intensidade desse luto coletivo vai depender do quanto o indivíduo sentia algum vínculo pela personalidade que morreu.
Na PUC-SP, uma pesquisa de conclusão de curso apresentada no final do ano passado mostrou que o sofrimento de um fã pela morte de um ídolo é semelhante ao experimentado quando é um ente mais próximo que morre.
"O indivíduo passa pelas mesmas fases de luto: choque, negação, desespero e recuperação", diz a psicóloga Patrícia David, autora da pesquisa.
"Ídolo é alguém que carrega muito da nossa fantasia. É emblema de algo. Quando morre, esse valor é abalado e as pessoas podem se sentir órfãs", diz Helena.

Símbolos


"O Ayrton Senna, por exemplo, era um símbolo de brasileiro que deu certo. Em relação ao governador, ele era uma figura de proa, um emblema de luta e coragem."
Num primeiro momento, é essa sensação de coragem e força que fica abalada nas pessoas que admiravam Mário Covas. O luto coletivo tem a ver com o sentimento coletivo de orfandade.
"O Covas tem uma simbologia de pai. Com sua morte, ficamos no desamparo, um sentimento típico de momentos em que alguém vai embora", diz Regina Trotto, psicóloga e psicanalista da sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro.
Diferentemente de mortes repentinas como a do piloto Ayrton Senna, a despedida do governador já tinha começado há algum tempo. E, por mais angústia que seu quadro clínico causasse na família e na população, permitiu que as pessoas fossem se despedindo dele, lembra Regina.
Esse tema, ou seja, o luto antecipatório, foi escolhido para a dissertação de mestrado do psicólogo José Paulo da Fonseca, outro pesquisador da PUC-SP.
Em março, o trabalho será apresentado a uma banca de especialistas da faculdade. "A idéia era demonstrar que o luto é vivido antecipadamente quando há uma previsão de morte como nos casos de câncer", diz Fonseca.
O pesquisador chegou à conclusão de que, se alguém -psicólogo, médico, amigo ou religioso- ajudar a família a viver esse processo, a dor se tornará mais suportável. "É possível usar esse tempo de despedida para compartilhar o sentimento de medo e insegurança diante da morte, o que faz bem para toda a família."
LEIA sobre o enterro de Mário Covas no caderno Brasil



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