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COMPORTAMENTO
Especialista diz que morte de personalidades é chance de entrar em contato com ritual privado, às vezes reprimido
Luto coletivo permite tristeza sem censura
AURELIANO BIANCARELLI
KÁTIA STRINGUETO
DA REPORTAGEM LOCAL
A morte do governador Mário
Covas fez São Paulo e o país vivenciarem o sentimento mais genuíno que o ser humano é capaz
de sentir, o luto. Com um adicional: num luto coletivo é permitido
demonstrar a tristeza sem censura. Muita gente chorou em público nos últimos dois dias.
Especialistas afirmam que a
morte de personalidades conhecidas e admiradas pelo grande público permite que as pessoas que
não "elaboraram" seus próprios
lutos venham a fazê-lo.
É um momento de reviver as
perdas pessoais, extravasar emoções abafadas. "Tomamos emprestado um pouco desse luto para chorar as nossas dores", diz a
psicóloga Maria Helena Pereira
Franco, coordenadora do Lelu
(Laboratório de Estudos e Intervenção sobre o Luto), da PUC.
Mesmo sem perceber, o luto coletivo é uma chance para entrar
em contato com o luto privado,
muitas vezes reprimido por uma
espécie de defesa pessoal ou até
por mudanças da sociedade atual
que tornaram os rituais de despedida mais curtos e superficiais.
"O prejuízo disso é semelhante
ao de não poder expressar o sentimento", diz a psicóloga Maria Júlia Kovacs, coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a
Morte do Instituto de Psicologia
da USP. Segundo ela, pesquisas
inglesas recentes mostram que
quem não demonstra as emoções
acaba sofrendo manifestações físicas no futuro.
Em tese, recuperar um pouco
do ritual pode ajudar. O ritual tem
uma função terapêutica. "Ele resgata a solidariedade, principalmente numa cidade como São
Paulo, onde é cada um por si a
maior parte do tempo", diz Maria
Júlia. Por ter um roteiro conhecido -o enlutado sabe o que fazer e
o que esperar- a cerimônia também ajuda a retomar o equilíbrio.
Viver o luto, por mais dolorido
que seja, é também um momento
de crescimento e lapidação humana. "A morte é um evento
maior e tem o poder de alterar o
cotidiano", diz Maria Júlia.
"Crenças cristalizadas são submetidas a uma nova avaliação."
Os especialistas acreditam que
os momentos de luto são importantes para a revisão de certas
posturas diante da vida. "Se você
vinha num processo de conduta
de risco, achava que podia ir numa festa, beber muito e continuar
dirigindo, quando alguém querido morre num acidente, você se
identifica. E tem a chance de perceber que a vida tem valor", diz.
A intensidade desse luto coletivo vai depender do quanto o indivíduo sentia algum vínculo pela
personalidade que morreu.
Na PUC-SP, uma pesquisa de
conclusão de curso apresentada
no final do ano passado mostrou
que o sofrimento de um fã pela
morte de um ídolo é semelhante
ao experimentado quando é um
ente mais próximo que morre.
"O indivíduo passa pelas mesmas fases de luto: choque, negação, desespero e recuperação",
diz a psicóloga Patrícia David, autora da pesquisa.
"Ídolo é alguém que carrega
muito da nossa fantasia. É emblema de algo. Quando morre, esse
valor é abalado e as pessoas podem se sentir órfãs", diz Helena.
Símbolos
"O Ayrton Senna, por exemplo,
era um símbolo de brasileiro que
deu certo. Em relação ao governador, ele era uma figura de proa,
um emblema de luta e coragem."
Num primeiro momento, é essa
sensação de coragem e força que
fica abalada nas pessoas que admiravam Mário Covas. O luto coletivo tem a ver com o sentimento
coletivo de orfandade.
"O Covas tem uma simbologia
de pai. Com sua morte, ficamos
no desamparo, um sentimento típico de momentos em que alguém vai embora", diz Regina
Trotto, psicóloga e psicanalista da
sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro.
Diferentemente de mortes repentinas como a do piloto Ayrton
Senna, a despedida do governador já tinha começado há algum
tempo. E, por mais angústia que
seu quadro clínico causasse na família e na população, permitiu
que as pessoas fossem se despedindo dele, lembra Regina.
Esse tema, ou seja, o luto antecipatório, foi escolhido para a dissertação de mestrado do psicólogo José Paulo da Fonseca, outro
pesquisador da PUC-SP.
Em março, o trabalho será apresentado a uma banca de especialistas da faculdade. "A idéia era
demonstrar que o luto é vivido
antecipadamente quando há uma
previsão de morte como nos casos de câncer", diz Fonseca.
O pesquisador chegou à conclusão de que, se alguém -psicólogo, médico, amigo ou religioso-
ajudar a família a viver esse processo, a dor se tornará mais suportável. "É possível usar esse
tempo de despedida para compartilhar o sentimento de medo e
insegurança diante da morte, o
que faz bem para toda a família."
LEIA sobre o enterro de Mário
Covas no caderno Brasil
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