São Paulo, segunda, 9 de março de 1998

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COTIDIANO IMAGINÁRIO
O verdadeiro culpado

MOACYR SCLIAR
Colunista da Folha

"Fogo em índio não foi homicídio, diz TJ" (Cotidiano, 6/3/98)

As pessoas que espiam o jornal por cima do ombro da gente são as que conhecem a verdade dos fatos. Foi o que constatei na sexta-feira última quando, numa lanchonete, lia na Folha a notícia sobre o julgamento dos matadores do índio pataxó.
-Estou inteiramente de acordo com a decisão- disse o cavalheiro ao meu lado, homem de meia-idade, elegantemente vestido, porém um tanto vacilante: provavelmente tomara alguns conhaques a mais. -Não foi homicídio coisa nenhuma. Aliás, vou mais além: acho que o verdadeiro culpado é o índio.
Não deixava de ser uma tese interessante, e me aprestei a ouvi-la. Sem se fazer de rogado, expôs seus argumentos.
-Em primeiro lugar: o cara provocou. Um sujeito que deita num banco num ponto de ônibus e fica dormindo, sem tomar qualquer precaução em sua defesa, está fazendo o quê? Está dando idéias. Qualquer cara normal que passe por ali pensará numa sacanagem. Pode ser uma coisa simples, como roubar os sapatos -se o elemento tiver sapatos, claro. Ou pode ser uma brincadeira mais sofisticada, exigindo álcool e fósforos. De qualquer modo, a provocação partiu dele, do índio.
Olhou-me -evidentemente eu estava funcionando como um juiz em seu tribunal imaginário- e continuou:
-Em segundo lugar, tenho fortes razões para crer que os índios são mais combustíveis que a população em geral. Índios, que eu saiba, não praticam esportes. Ficam, pois, flácidos -e um corpo flácido, sem aquela sadia rigidez dos atletas, seguramente é presa fácil das chamas. Se os índios jogassem tênis, por exemplo, isso não aconteceria. Trata-se de um estilo de vida perigoso, e o indivíduo tem de arcar com o perigo gerado por seu estilo de vida. E o cocar? E aquelas penas que os índios usam? Aquilo está pedindo fogo.
Fiquei esperando um terceiro argumento, que não veio. O homem considerava aquilo suficiente.
-Para mim, este pataxó deveria até ser condenado. Pena leve, que fosse; porém condenado, e sem apelação.
-Mas ele morreu- ponderei.
-Viu? -disse ele, triunfante. -Eu não disse? É a comprovação da má-fé. Morreu! O que não fazem eles para escapar à Justiça!


O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal



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