São Paulo, sábado, 9 de maio de 1998

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LETRAS JURÍDICAS
Denuncismo Furado

WALTER CENEVIVA
da Equipe de Articulistas

Nos últimos anos estimulou-se a impressão de que a operação "Mãos Limpas", na Itália, realizaria o sonho da Justiça, punindo culpados, livrando inocentes e eliminando a corrupção no serviço público italiano. A não ser pelo estrépito do noticiário (com lucros para a mídia) e por suicídios de acusados (alguns decorrentes de abusos das autoridades), o resultado, passado o tempo, foi, em uma só palavra, zero.
Recordei, faz meses, que nenhum expurgo punitivo, com desrespeito aos direitos fundamentais, merece apoio do democrata. O maccartismo americano, por ser mais recente, dramatiza o inconveniente do modelo, quando transposto para a pretensão de pureza política.
Entre nós, processos sumários da ditadura militar resultaram em uma ou outra punição de delinquentes. Menos importantes, porém, que os abusos cometidos e as vantagens pessoais obtidas por representantes do poder graças, inclusive, como visto nas últimas semanas, à tortura e às pressões psicológicas que destruíram vidas, mesmo quando não mataram suas vítimas.
É bom esclarecer: a referência ao resultado negativo das "Mani Puliti" não é minha. É de respeitável representante da magistratura italiana, o procurador Gherardo Colombo, um dos grandes astros daquela operação, ao lado de Antonio Di Pietro.
Em palestra na Universidade de Florença, em abril, debatendo sobre processo, televisão e deslegitimação, Colombo recordou, conforme noticiado pelo "Corriere della Sera", que pouco foi descoberto, havendo ficado de fora muitos personagens "sequestráveis". Colombo usou a palavra "ricattabili", que se refere ao verbo "ricattare", o qual tanto significa sequestrar quanto resgatar.
O magistrado italiano acrescentou, segundo a mesma fonte: "Serei pessimista, mas percebo que a possibilidade de administrar Justiça, frente a todos pelo mesmo modo, está chegando ao que era nos anos 80. Ou seja: zero".
Anotei há tempos que, das milhares de prisões cautelares e de inquirições abertas, poucas chegaram a resultado concreto condenatório final. A demora da Justiça provocou a prescrição de crimes dos quais os corruptos, supostos ou verdadeiros, eram acusados.
Contribuíram para esse efeito complicações criadas pelos próprios acusadores, ao lado de "provas" suspeitíssimas, colhidas com o testemunho de pistoleiros e traficantes alegadamente "arrependidos", que passaram a fazer denúncias em troca de vantagens penais.
A Itália é o exemplo vivo de que esse sistema, em grande parte dos casos, não funciona. Finalmente, diz Colombo que algumas dificuldades decorreram da falta de resposta das rogatórias internacionais, com pedidos de informação formulados pelas autoridades italianas.
Injustiças cometidas, pressões ilegais, desrespeito aos direitos humanos, objetivos políticos ocultos acoplados ao escândalo certamente influíram para desestimular a colaboração de autoridades de outros países. O grande herói das "mãos limpas", Antonio Di Pietro, elegeu-se senador. Hoje é acusado de haver recebido um empréstimo de 100 milhões de liras (cerca de R$ 62.500,00) de seu ex-amigo, o empresário construtor Antonio D'Adamo, para ajudar na compra de sua casa em Curno, o qual veio a ser pago, mas sem juros, segundo o "Corriere".
A prática democrática da Justiça que respeite os direitos dos acusados é tão defeituosa quanto a democracia. Todavia, não há sistema mais eficaz de se realizar a Justiça monopolizada pelo Estado, considerando que é melhor absolver dez culpados do que punir erroneamente um inocente.



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