São Paulo, sábado, 10 de agosto de 2002

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URBANISMO

Para urbanista, faltam políticas setoriais à proposta da prefeitura

"Só 2ª fase salva o Plano Diretor"

DA REDAÇÃO

Por falta de políticas setoriais detalhadas e articuladas e de uma proposta urbanística consistente, o texto do Plano Diretor proposto pela Prefeitura de São Paulo e complementado pela Câmara Municipal não garante que os objetivos previstos pelo governo -como redução significativa dos congestionamentos, da favelização e das cheias- sejam atingidos nos dez próximos anos.
É essa a opinião do arquiteto e urbanista Luiz Carlos Costa, 67, professor de planejamento urbano da Universidade de São Paulo que já participou da elaboração de várias propostas de Plano Diretor nos últimos 20 anos.
Para corrigir o que classifica como "falhas e limitações do plano", o arquiteto propõe que o governo decida por uma aprovação da lei em duas fases. Na primeira, a administração reconheceria no texto do substitutivo uma lei de diretrizes. Então, no decorrer dos próximos meses, produziria estudos que permitissem definir ações, normas, programas e planos específicos que devem ser adotados para chegar à cidade desejada.

Folha - O texto do substitutivo do Plano Diretor é um bom projeto para a cidade?
Luiz Carlos Costa -
Ainda não é um plano que cumpra seu papel. Em junho, quando estava em pauta o projeto do Executivo, corríamos o risco de chegar a dois resultados igualmente desastrosos: o projeto ser totalmente rejeitado ou totalmente aprovado. Rejeitar totalmente o projeto significava jogar fora os esforços feitos pela atual administração para iniciar a tempo o planejamento estratégico da cidade e aplicar de imediato os instrumentos inovadores do Estatuto da Cidade. Por outro lado, aprová-lo integralmente significaria dar por definitivo um plano que muitos avaliaram como incompleto e desarticulado, muito aquém do exigido para a superação da crise de São Paulo.

Folha - Por que o plano do governo é incompleto e desarticulado?
Costa -
A Constituição e o Estatuto da Cidade definem o Plano Diretor como um conjunto de decisões articuladas, aprovadas em lei, destinadas a reorientar o desenvolvimento urbano para objetivos prioritários em determinado período histórico. Portanto, a função do Plano Diretor só será cumprida se ele satisfizer certas condições: apresentar clareza e justificativa dos objetivos prioritários; ter consistência das políticas a adotar; conter uma proposta urbanística suficiente para gerar as transformações desejadas do território; e apresentar diretrizes de ação bastante precisas para garantir a viabilidade e a coerência dos programas. O projeto atual deixa dúvidas sobre muitos desses aspectos. A única alternativa, portanto, é criar tempo e oportunidade para o indispensável aperfeiçoamento do plano.

Folha - Qual seria a solução?
Costa -
A solução objetiva, como já foi proposto ao governo, está em admitir a aprovação do plano em dois tempos. Na primeira etapa, seriam definidos os objetivos prioritários para a década, as diretrizes estratégicas para alcançá-los e os instrumentos já possíveis de serem instituídos para desencadear as novas práticas. Na segunda, com tempo e organização, seriam tomadas as decisões operacionais sobre planos específicos, projetos e normas reconhecidos como essenciais à eficácia do Plano Diretor. Esse é o recurso para superar o impasse e assegurar um plano à altura de São Paulo.

Folha - As melhorias necessárias já não foram feitas no substitutivo do vereador Nabil Bonduki?
Costa -
Infelizmente não. Nabil e sua equipe fizeram um trabalho extraordinário, integrando sugestões desencontradas, em condições e prazos muito adversos. Muito foi melhorado, mas não o suficiente para salvar o plano de seus vícios de origem.

Folha - Que problemas restaram?
Costa -
Problemas relativos a políticas públicas setoriais, ao planejamento urbanístico e ao sistema de planejamento. São problemas bastante graves e suficientes para comprometer muitos dos avanços que o plano propõe.

Folha - Quais são as políticas públicas setoriais essenciais?
Costa -
Uma é a de circulação, relativa aos transportes e vias, cuja principal missão é acabar com os congestionamentos que paralisam a cidade. A segunda política é a da habitação popular, cujo alvo é atender a quase metade da população que não tem recursos para obter moradia nas condições do mercado imobiliário e, por isso, é obrigada a aumentar as favelas, os cortiços e os bairros precários. A terceira política essencial é a de saneamento e drenagem, que inclui a questão dos mananciais de água, indispensáveis à cidade.

Folha - Não se definem essas políticas no Plano Diretor?
Costa -
O projeto não apresenta definições e propostas suficientemente fortes e precisas que criem garantias de que seus objetivos serão atingidos. Por exemplo: não há nenhuma quantificação explícita entre as ações propostas e os objetivos que se pretende alcançar ou entre os custos dos programas e os recursos que podem ser mobilizados no período do Plano Diretor. Mais: não se indica quanto das metas de produção depende da ação do município ou de parcerias com outras esferas de governo ou com o setor privado. Assim, não se pode avaliar quanto da demanda estimada poderá ser atendida ou o quanto a sociedade deverá pagar pelas políticas.

Folha - O sr. disse que muitos não conseguem obter moradia nas condições do mercado imobiliário. Que política imobiliária e fundiária o Plano Diretor deve propor?
Costa -
Cabe ao Plano Diretor definir uma nova e mais civilizada relação entre o setor imobiliário, o poder público e o conjunto da sociedade, que viabilize a cidade desejada da próxima década. Isso implicaria em acrescentar às normas da produção imobiliária algumas exigências fundamentais de interesse coletivo até aqui desconsideradas. Três dessas exigências: conter a tendência de adensamento das construções em níveis compatíveis com a capacidade de suporte das diferentes zonas; assegurar a disponibilidade de terras para habitação popular e serviços essenciais; e obrigar os empreendimentos a ressarcir a coletividade dos custos de urbanização decorrentes da verticalização que produzem.

Folha - Essas exigências não são feitas? O sr. pode dar algum exemplo de um resultado do texto que considera insatisfatório?
Costa -
Sim, os índices máximos de aproveitamento [área construída permitida em relação à metragem do terreno". O projeto original já propunha índices máximos maiores que os do atual zoneamento. Mas esses índices não foram explicitamente fundamentados no cálculo da capacidade de suporte das zonas. Por isso, é inegável o risco de que pudessem ser agravados os congestionamentos e a superocupação de muitos bairros. O substitutivo acabou piorando ainda mais esse risco, pois, igualmente sem os estudos necessários, aumentou em quase três vezes a área urbana onde se pode construir até quatro vezes a área do terreno, num total muito superior à demanda e à própria capacidade executiva do setor imobiliário. O fato de o substitutivo ter eliminado os equivocados estoques de potencial construtivo propostos não eliminou a necessidade de se fixar um limite para o adensamento no Plano Diretor.

Folha - E quanto à outorga onerosa [cobrança pelo direito de construir acima do permitido", que tanta polêmica tem provocado?
Costa -
A adoção da outorga onerosa sobre o direito de construir constitui uma decisão de grande repercussão econômica e política. É natural que sua discussão tenha sido fortemente influenciada por pressões do setor imobiliário. Não se pode dizer que os demais interessados e os principais beneficiários tenham igualmente participado da discussão, dada sua maior dificuldade de informação e mobilização. O desequilíbrio acabou se refletindo no debate. Por exemplo: o substitutivo acabou reduzindo à metade os recursos anuais a serem providos pela outorga onerosa e sua aplicação resultará adiada. Além disso, concedeu-se gratuidade da outorga aos que apresentarem projetos rapidamente, com o risco de isso gerar uma corrida especulativa que pode acabar esgotando o potencial de muitas áreas.

Folha - Quais as transformações estruturais mais importantes a serem atingidas com o plano?
Costa -
Primeiro, a reversão da tendência de elitização e esvaziamento populacional dominante em toda a área de urbanização consolidada, que deve ser reaproveitada para propósitos sociais e funcionais diversificados. Segundo: a limitação e a recuperação da periferia popular precária que se densifica, gueto vergonhoso da exclusão social. Terceiro: a implantação de um sistema integrado de circulação que contribua para unificar e equalizar a acessibilidade em todo o território. Por fim, a consolidação de unidades territoriais orgânicas estruturadas em eixos e pólos que garantam a unidade da cidade, a identidade de regiões mais equilibradas e autônomas e a reorientação dos vetores de urbanização que invadem áreas a preservar. Para isso, é sobretudo fundamental que o Plano Diretor contenha todos os elementos necessários para assegurar a coerência, no conjunto da cidade, das ações executivas e normativas propostas. Não basta, por exemplo, definir um sistema de transportes com determinada capacidade se não ficarem igualmente estabelecidos os limites quantitativos de uso do solo para as regiões servidas por ele. Não creio que essas funções do plano urbanístico possam ser cumpridas com os elementos contidos no projeto. Apesar dos diversos mapas que ele contém, não se consegue visualizar claramente qual o plano urbanístico proposto, seus objetivos e a estratégia de implementação.



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