São Paulo, segunda-feira, 10 de agosto de 2009

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MOACYR SCLIAR

Mééé, ou: a paixão caprina


De repente, o patrão decidira trocar as cabras por uma esposa americana; para o pastorzinho, isso era um verdadeiro crime


 


Queniano oferece 40 cabras e 20 vacas a Hillary Clinton por sua filha. O queniano Godwin Kipkemoi Chepkurgor aproveitou a viagem da secretária de Estado americana, Hillary Clinton, ao país para reforçar um pedido que já havia feito há nove anos a seu marido, o então presidente dos Estados Unidos Bill Clinton.
Ele ofereceu 40 cabras e 20 vacas para "comprar" a filha do casal, Chelsea Clinton, em casamento. Questionada sobre a oferta em uma entrevista em Nairóbi, capital queniana, Hillary afirmou que sua filha é muito independente e por isso teria que recusar "a gentil oferta". Para Chepkurgor, a resposta foi mais uma decepção, já que ainda espera conquistar a mão da "linda, disciplinada" Chelsea. Folha Online

A NOTÍCIA de que o queniano Godwin Kipkemoi Chepkurgor tinha oferecido 40 cabras e 20 vacas pela mão de Chelsea Clinton foi recebida com incredulidade e sorrisos irônicos em todo o mundo.
Com uma exceção: a do pastorzinho que cuidava do rebanho de Chepkurgor. Não era um rebanho muito grande, nem particularmente valioso, mas o rapaz orgulhava-se de seu trabalho, ao qual dedicava o melhor de seus esforços.
De repente, porém, o patrão decidira trocar as 40 cabras e 20 vacas por uma esposa americana, uma moça que só conhecia de fotos. Para o pastorzinho isso não era só um acinte, era um verdadeiro crime. Para começar, Chepkurgor, que ele sempre respeitara, curvava-se diante dos americanos, numa inadmissível atitude de submissão. Depois, estava privando sua gente, pobre e sofrida gente, de uma fonte de alimento que certamente faria falta naquele pobre lugar. Vacas e cabras eram raras por ali, como o era a comida em geral.
Mas havia um terceiro motivo, algo que guardava em segredo no fundo de seu coração. O pastorzinho amava o rebanho. Amava particularmente uma das cabras, linda e vivaz, a quem apelidara de Maluquinha, porque estava sempre balindo e correndo pelos campos, uma visão que fazia bater mais forte o coração do pastorzinho.
Aos treze anos, o jovem sentia despertar em si o fogo da paixão. Para Maluquinha compunha versos e canções. O que, aliás, não lhe dava nenhuma culpa. Se no bíblico Cântico dos Cânticos o cabelo da amada é comparado a um rebanho de cabras descendo a encosta do monte, por que não poderia ele celebrar as próprias cabras, a sua cabra?
Agora, no entanto, isso não aconteceria. O patrão, movido por uma paixão impura, ia entregar Maluquinha aos americanos. Decidiu que isso não aconteceria. Se preciso, fugiria com o rebanho inteiro, e se esconderia com Maluquinha numa caverna da montanha -para sempre, talvez. Isto lhe custaria caro; se o pegassem, certamente cumpriria uma longa pena de prisão.
Mas estava disposto a arriscar. O que, para seu alívio, não foi necessário. Hillary Clinton recusou a "gentil proposta". Chepkurgor ficou decepcionado, mas o pastorzinho vibrou. Suas preces tinham sido atendidas, pelo que estava muito grato à secretária de Estado. E até está achando Chelsea, que de início considerara uma vilã, uma moça simpática, bonita. Quase tão simpática e bonita quanto a cabra Maluquinha.

MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha.

moacyr.scliar@uol.com.br


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