São Paulo, quinta, 10 de setembro de 1998

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FERIADO TRÁGICO
Até neblina vira ameaça na viagem de 29 sobreviventes entre Leme e Anápolis que a Folha acompanhou
Sobraram assentos no retorno para casa

RODRIGO VERGARA
da Reportagem Local

Olhos arregalados e mãos dadas. Apesar do tamanho e imponência do ônibus da empresa Limatur que os levaria de volta a Anápolis (GO), os 29 romeiros sobreviventes do acidente ocorrido na rodovia Anhanguera, anteontem, embarcaram suspeitando da segurança que a estrutura de ferro seria capaz de oferecer.
Eram 16h30. Menos de 14 horas antes, a vida daqueles passageiros que agora entravam no ônibus dependia de conseguir sair de um veículo idêntico, que ardia em chamas. Salvaram-se os que pularam pelas janelas.
Os romeiros embarcaram abraçados aos cobertores e travesseiros doados pela prefeitura de Leme.
Para muitos, o pequeno pacote ocupava o lugar dos amigos e parentes que não conseguiram escapar do fogo.
Entre os dedos, quase todos levavam ainda uma lembrança do motivo da viagem: um terço comprado em Aparecida do Norte, onde passaram o feriado prolongado orando. Pouco depois do ônibus tomar a mesma Anhanguera, rumo a Minas Gerais, um fiel sugeriu, o padre Renato de Lima Lopes concordou e todos rezaram um terço, que durou cerca de 25 minutos.
Antes da tragédia, o grupo de religiosos lotava dois ônibus da empresa Centro-Oeste Turismo. Na partida silenciosa da cidade de Leme, na tarde de terça-feira, havia lugares de sobra entre as 50 poltronas disponíveis no veículo.
Apesar disso, Maria Odila dos Santos fez toda a viagem espremida com as duas filhas Adriana, 18, e Marília, 10, em duas poltronas. A quem lhe apontava um lugar vazio, Maria Odila endereçava um sorriso constrangido, envergonhada de continuar com medo de perder as filhas.
"Na hora do acidente, a Adriana conseguiu empurrar a Marília pela janela e pular depois. Eu estava meio separada delas, foi um desespero, desespero de mãe. Não queria passar por isso de novo. Por isso vim grudada nelas", desabafou, na chegada, já em Anápolis.
A apreensão da mãe foi longa. Os dois motoristas da Limatur que se revezaram durante a viagem cumpriram o percurso entre Leme e Anápolis em 13 horas e meia, quase quatro horas além do normal.
José Luis Dionísio, um dos motoristas, sorriu ao responder por que a viagem foi tão demorada.
"Deve ter sido duro para eles passar tanto tempo dentro de um ônibus depois de tudo que aconteceu. Eu vim devagar, para evitar solavancos, curvas muito acentuadas. O mais importante é que todo mundo conseguisse dormir e descansar durante a viagem."
Mas os sobressaltos foram inevitáveis. Mesmo depois do anoitecer, os passageiros não se rendiam ao sono. De cabeças erguidas sobre as poltronas, eles monitoravam os movimentos do motorista.

Fumaça
Às 19h10, o ônibus seguia pela Anhanguera, em uma longa subida. Ao chegar no topo, uma nuvem de poeira que o vento soprava dos campos recém-arados cobria a estrada, filtrando a luz dos faróis que vinham em sentido contrário.
Os romeiros confundiram a cortina que cobria a estrada com uma nuvem de fumaça. Foi como se vissem fogo. Pelo menos cinco mulheres se levantaram e gritaram para o motorista que parasse antes de atravessar a barreira suspensa no ar. Em meio aos gritos, o padre falou mais alto. Era só neblina.
Na escuridão do ônibus, ainda se ouviam explicações, em voz baixa, para a histeria. "Parecia com a fumaça do caminhão, achei que fosse outro acidente."
Ainda não. Mais 15 minutos e, às 19h23, surgiram luzes e cones na pista. O padre se adiantou, dizendo que se tratava de uma blitz da polícia. Agora ele errou. O ônibus desfilou em silêncio ao longo dos destroços de um caminhão carregado de cereais, tombado do lado direito da estrada.

Jornal Nacional
Até o final da viagem, houve ainda duas provas de fogo para as lágrimas dos sobreviventes.
A primeira foi rever a freira Isabel Aparecida Cantelli, cujo nome religioso é Dominique. Irmã Dominique ficou entre os 53 mortos, mas anteontem, no "Jornal Nacional", reapareceu viva, em imagens de arquivo da TV Globo.
Os romeiros eram uma multidão compacta em frente ao televisor instalado em um restaurante de beira de estrada, mas muitos não resistiram à imagem da irmã, uma das organizadoras da viagem.
Acabada a reportagem, o grupo foi comer. A maioria. Alguns ficaram perambulando pelo posto.
A chegada a Anápolis abalou os últimos nervos que restavam. O grupo foi recebido na casa do padre Renato, onde já os aguardavam os parentes e amigos.
João Vaz, que se sobressaiu ao grupo como um líder natural, consolou todo mundo durante o retorno. Agora era hora de ele também chorar, ao rever a família. Faltou a mãe, Maria Mesquita, que também foi para Aparecida, mas não volta nunca mais da viagem.



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