São Paulo, quarta-feira, 11 de maio de 2011

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ANTONIO PRATA

Os ingênuos e a tortura


O único cenário em que a tortura deixaria o mundo mais seguro seria se alguém monopolizasse a prática

DIAS APÓS A MORTE de Bin Laden, vi na Fox News o ex-secretário de defesa norte-americano Donald Rumsfeld justificando o uso da tortura; se as informações que levaram a Osama foram conseguidas em Guantánamo, durante sessões de simulação de afogamento, não tinha sido um acerto do Estado adotar tais práticas na luta contra seus inimigos?
A turma neocon (já não tão "neo", mas cada vez mais "con", diga-se de passagem) defende-se hasteando a bandeira do "pragmatismo" -esse novo Deus, diante do qual todos os valores devem curvar-se. Para eles, os direitos humanos são algo belo, porém ingênuo, que não existe no "mundo real" - mais ou menos como Papai Noel ou o socialismo. Princípios universais, dizem por aí, com sorrisinhos irônicos, são ideias bacanas para se contar às crianças, ou de se debater no centro acadêmico; na hora de garantir a própria segurança, contudo, dois fios desencapados são bem mais eficientes.
O exemplo comumente usado pelos paladinos da masmorra é o do avião levando cem criancinhas e uma bomba relógio. Na situação hipotética, uma pessoa sabe o código para desarmar o artefato explosivo: é um terrorista, que está em terra, nas mãos da polícia. Deveriam as autoridades deixar as cem criancinhas morrerem, em nome de um princípio, ou quebrar algumas costelas do criminoso, para que ele entregue a informação?
A ideia que pretendem passar com o exemplo é que, numa situação-limite, é preciso escolher o mal menor. Com a morte de cem crianças no outro prato da balança, a opção pela tortura estaria justificada.
O problema, pelo qual o exemplo passa ao largo, é que o que é "um avião cheio de criancinhas" para mim e para você - ou seja, o mal terrível que justificaria a tortura - muda de acordo com o grupo, o lugar ou a época. Um fundamentalista cristão ou muçulmano pode achar que uma ofensa a Deus, num livro ou numa charge, é o pior acontecimento sobre a Terra: para impedir a heresia, por que não quebrar algumas costelas, ou mesmo acabar de vez com o "criminoso"? Um governo crê que a sua manutenção é a meta mais valiosa; por que não, então, torturar os dissidentes?
O que não percebem os defensores do pau-de-arara para o terrorista do avião é que se aceitarem a tortura em um único caso, estão defendendo o suplício de presos políticos em Cuba e na China, dos reféns americanos no Oriente Médio, dos policiais capturados por traficantes (e vice-versa) nas favelas do Rio.
Mais ainda: quem defende a tortura do terrorista e compactua com a tese "pragmática" de que, para impor nossos ideais, todos os meios são válidos, está, em última análise, legitimando a explosão do avião cheio de criancinhas.
O único cenário em que a tortura deixaria o mundo mais seguro para alguém seria se esse alguém detivesse o monopólio de sua prática. Para isso, teria que ser o Rei da Terra; sua polícia e Exército precisariam dominar todos os cantos e esmagar seus adversários, de modo que não houvesse mais nenhuma dissensão possível. Eis a ingênua ambição por trás dos atos de um Donald Rumsfeld, um Bin Laden, um Fernandinho Beira-Mar. Os resultados são bem conhecidos.

antonioprata.folha@uol.com.br

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