São Paulo, quinta, 11 de junho de 1998

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OPINIÃO
A avaliação do livro didático e a Copa

SCIPIONE DI PIERRO NETTO

Em meados da década de 60, o magistério de matemática foi levado a apaixonar-se por um tema que se dava como irreversível, a "matemática moderna"; quem não o seguisse era tido como tolo ou ultrapassado. Os que foram prudentes salvaram-se, mas todos sabem o desastre que significou e os prejuízos que produziu.
Estranhavam alguns que nenhuma pesquisa científica tivesse sido feita em campo, avaliando os resultados daquela conduta -que se suspeitava correta- comparados à modéstia e a segurança de outros tratamentos. Como diria Hegel, "elegeu-se a suspeita como paradigma da verdade".
Trinta anos depois, o fato se repete. Nenhuma pesquisa aferida. Só resultados de alguns centros, insuficientes para definir uma conduta nacional. Privilegia-se uma conduta pedagógica em detrimento de outras, sem fundamentos bem aferidos, com base em fatos isolados, monografias ou opiniões pessoais. O país precisa de mais do que isso em educação.
Assim, 80% ou mais dos livros escolhidos pelos professores de matemática das escolas públicas e particulares do país foram rejeitados pelo MEC, que contratou uma ONG, o Cenpec, para a avaliação.
Três aspectos não podem dispensar análise: o normativo, o jurídico e o técnico. Os dois primeiros exigem respeito à lei: notório saber, licitação e principalmente pluralidade de metodologias, garantidos pela Lei de Diretrizes e Bases e pela Constituição. Um procurador da República é que poderá se manifestar sobre isso.
Quanto ao aspecto técnico, podemos nos pronunciar, a contragosto, pois não há como argumentar sobre terceiros. Falando sobre o nosso livro "Conceitos e Histórias", afirma o avaliador:
"O item 5, "Sistema de numeração decimal', apresenta problemas de ordem conceitual, pois, segundo a apresentação inicial do texto, "a contagem dos elementos de um conjunto é sempre feita tomando-se como base o número de elementos do agrupamento que se faz'. Seguindo esse raciocínio, não faz sentido a afirmativa, comum em esporte, de que 22 jogadores representarão o Brasil na Copa do Mundo, os titulares e os reservas, pois esses jogadores estão agrupados de 11 em 11. Segundo o exposto neste livro, como estamos trabalhando na base 11, o resultado também deveria ser escrito na base 11, e não na base 10".
Parece inacreditável! Avaliem os que entendem alguma coisa de matemática. É uma pantomima? Eis outra nota da avaliação:
"Na mesma página, a definição de frações inversas está errada ao afirmar que "frações inversas são aquelas em que o produto é igual a 1 ou o numerador de uma é igual ao denominador de outra'. Segundo essa definição, 2/3 é inversa de 5/2, pois o numerador de 2/3 é igual ao denominador de 5/2". Parece brincadeira! Um colega que leu comigo perguntou: onde o avaliador aprendeu matemática?
O terceiro tópico destina-se ao entendimento de professor ou profissional de matemática, quando, grifando, o examinador exige que se demonstre que a soma dos ângulos de um triângulo mede 180 antes que se fale no axioma de Euclides, absurdo já convalidado em 1830 por Gauss, Lobatchevski e Bolyai. É de alarmar!
O que fazer, ministro? Uma avaliação com incorreções tão graves não invalida o processo?
O direito de resposta é um sofisma arrogante e perverso da Secretaria da Educação Fundamental do MEC: "pode-se reinscrever o livro no programa...". Mas a inscrição é bienal, publicada no ano seguinte; e o livro só voltará ao catálogo, no mínimo, após quatro anos. É como se alguém pudesse abandonar o emprego por quatro anos.
Enquanto a gente pensa e sofre, ministro, como o MEC hoje é "MED" (Educação e Desporto), não valeria a pena o senhor mandar para a França aquele pretenso avaliador que quis contar os jogadores da seleção na base 11 para explicar isso ao Zagallo? Quem sabe o nosso treinador não fica esperto, arruma a defesa e a gente ganha a Copa? Legal, não?


Scipione Di Pierro Netto, 71, matemático, doutor em educação pela USP, professor aposentado da Faculdade de Educação da USP, professor titular do Departamento de Matemática da PUC-SP e membro da Abrale (Associação Brasileira dos Autores de Livros Educativos)



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