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COTIDIANO IMAGINÁRIO
Diálogo com o Diálogo
MOACYR SCLIAR
PM controla protesto com "diálogo" - Um dos policiais militares
destacados para vigiar o protesto
de camelôs ontem na Lapa (zona
noroeste de São Paulo) usou um
cassetete que trazia a palavra
"diálogo". Cotidiano, 6.out.99
Meu caro Diálogo, quero
cumprimentá-lo. Você foi fantástico, ontem. Meu amigo, você ultrapassou todas as expectativas. Nota 10 para a sua
atuação. Não: nota 11. Você se
lembra daquele camelô gordinho correndo, apavorado, gritando "fujam, fujam, o Diálogo vem aí"? Aquela foi ótima. E
muito boa, também, foi aquela
surra que você aplicou no camelô de óculos, aquele que dizia "é preciso conversar, é preciso conversar".
Devo lhe confessar que estou
surpreso com a sua mudança.
Antes você era um cassetete comum e, sou obrigado a lhe dizer, pouco eficiente. Você não
batia em ninguém. Você ficava
parado, quieto, enquanto seus
companheiros cumpriam o dever. Isso me deixava preocupado, porque, ao fim e ao cabo,
era a minha reputação que estava em jogo. Cheguei até a
perder o sono. Mas aí me ocorreu a solução: você precisava
de um nome. O que estava
comprometendo sua atuação
era exatamente isso, o fato de
você ser anônimo. Ninguém
gosta do anonimato e você não
é uma exceção. Agora: modéstia à parte, o nome que bolei
para você é simplesmente genial. É engraçado, é irônico. E
contém uma mensagem, melhor dizendo, uma advertência. Já houve época em que
Diálogo era sinônimo de conversa fiada, de papo furado.
Esse tempo passou. Diálogo hoje só pode ser isso, baixar o cassetete.
O nome é adequado, sim.
Tão adequado, que você mudou. Os outros PMs levam seus
cassetetes para o protesto; no
nosso caso é você que me leva,
você que me conduz. Você se
precipita para o combate, eu
tenho de segurar você, com dificuldade até. Você é outro,
Diálogo. E isso até me preocupa. Sinto em você uma estranha vibração. Como se você recusasse o meu controle. Como
se você estivesse prestes a protestar contra mim. Não se atreva, meu amigo. Não se atreva.
No momento em que tal acontecer, o diálogo entre nós estará
terminado. Você voltará a ser
um cassetete comum. Que não
é, como você sabe, imune ao fogo.
O escritor Moacyr Scliar escreve nesta
coluna, às segundas-feiras, um texto de
ficção baseado em notícias publicadas no
jornal.
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