São Paulo, Segunda-feira, 11 de Outubro de 1999
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COTIDIANO IMAGINÁRIO

Diálogo com o Diálogo

MOACYR SCLIAR

 PM controla protesto com "diálogo" - Um dos policiais militares destacados para vigiar o protesto de camelôs ontem na Lapa (zona noroeste de São Paulo) usou um cassetete que trazia a palavra "diálogo". Cotidiano, 6.out.99

Meu caro Diálogo, quero cumprimentá-lo. Você foi fantástico, ontem. Meu amigo, você ultrapassou todas as expectativas. Nota 10 para a sua atuação. Não: nota 11. Você se lembra daquele camelô gordinho correndo, apavorado, gritando "fujam, fujam, o Diálogo vem aí"? Aquela foi ótima. E muito boa, também, foi aquela surra que você aplicou no camelô de óculos, aquele que dizia "é preciso conversar, é preciso conversar".
Devo lhe confessar que estou surpreso com a sua mudança. Antes você era um cassetete comum e, sou obrigado a lhe dizer, pouco eficiente. Você não batia em ninguém. Você ficava parado, quieto, enquanto seus companheiros cumpriam o dever. Isso me deixava preocupado, porque, ao fim e ao cabo, era a minha reputação que estava em jogo. Cheguei até a perder o sono. Mas aí me ocorreu a solução: você precisava de um nome. O que estava comprometendo sua atuação era exatamente isso, o fato de você ser anônimo. Ninguém gosta do anonimato e você não é uma exceção. Agora: modéstia à parte, o nome que bolei para você é simplesmente genial. É engraçado, é irônico. E contém uma mensagem, melhor dizendo, uma advertência. Já houve época em que Diálogo era sinônimo de conversa fiada, de papo furado. Esse tempo passou. Diálogo hoje só pode ser isso, baixar o cassetete.
O nome é adequado, sim. Tão adequado, que você mudou. Os outros PMs levam seus cassetetes para o protesto; no nosso caso é você que me leva, você que me conduz. Você se precipita para o combate, eu tenho de segurar você, com dificuldade até. Você é outro, Diálogo. E isso até me preocupa. Sinto em você uma estranha vibração. Como se você recusasse o meu controle. Como se você estivesse prestes a protestar contra mim. Não se atreva, meu amigo. Não se atreva. No momento em que tal acontecer, o diálogo entre nós estará terminado. Você voltará a ser um cassetete comum. Que não é, como você sabe, imune ao fogo.


O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.


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