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São Paulo, sábado, 11 de outubro de 2003

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LETRAS JURÍDICAS

Voto na Constituição sem votos

WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA

O aniversário de pessoas, documentos ou fatos dá boa oportunidade para examinar sua história. É o que estou fazendo, nesta coluna, durante outubro, em virtude dos 15 anos da Constituição de 1988. A ordem lógica dos assuntos fica, porém, alterada por influência das notícias de que alguns dispositivos da Carta não foram aprovados em regular votação dupla ou mesmo estão em vigor sem nenhuma votação.
Vendo as coisas com olhos da pureza mais pura, do formalismo mais exigente, a irregularidade é muito lamentável. A Constituição é o documento fundamental da nação e a lei básica sobre a qual se suportam todas as outras leis. Não deveria ter acontecido, mas aconteceu. "Et maintenant, que vais je faire?", perguntaria Gilbert Becaud. E agora?
Para a resposta, recordo duas questões, uma prática e outra teórica. Esta fica para o fim. A questão prática está permanentemente no trabalho de quem escreva com tempo certo de fechamento, em drama diário dos jornais. Nas revistas semanais, surge uma vez a cada sete dias. Limite de fechamento leva à loucura, sobretudo quando, de repente, se descobre a manchete errada, a informação mal apurada, o fato mudado por acontecimento de última hora. Pois bem, a criação das leis não escapa desse destino fatal e angustiante. Em 1988, quase ocorreu um desastre técnico quando o texto final da Carta atribuía ao Tribunal do Júri competência para julgamento dos crimes contra a vida. "Peraí!", gritou alguém. O grito era prudente, pois, se mantida a redação, até atropelamentos, até acidentes do trabalho com morte teriam de ser submetidos ao tribunal popular. Acrescentou-se, depois de "crimes", o adjetivo "dolosos", para caracterizar delitos em que o agente tem a intenção de matar a vítima. Salvou-se o texto. Desde então, houve revisões, emendas, com milhões de atos confirmadores da Carta em bloco.
Na excelente súmula que a Folha publicou anteontem, lembrou-se o erro que ia sendo cometido no processo legislativo do artigo 59: descobriu-se que não referia as medidas provisórias, embora estivessem indicadas no artigo 62. As tais medidas foram incluídas no artigo 59, aparentemente sem votação apropriada. Prejudicou-se a forma. Salvou-se a substância.
Supondo que as omissões noticiadas, do voto regular, sejam confirmadas, qual o resultado para a lei brasileira? Para responder, recordemos que a Constituição foi jurada na Assembléia Nacional Constituinte. Criou o Estado democrático de Direito na República Federativa do Brasil. Sucessivas emendas e republicações consolidaram a versão final. Adquiriram validade e eficácia, com aptidão plena para produzir efeitos de direito. Algumas normas dependiam de leis posteriores. Outras, servindo de exemplo o artigo 5º, entraram em vigor no próprio dia 5 de outubro, dando inviolabilidade à garantia dos direitos fundamentais.
Nestes 15 anos, a Constituição vem sendo aplicada tal como publicada. Deu origem a Constituições estaduais, submetidas aos seus princípios básicos, mesmo com liberdade de ajuste às condições locais. É o que se chama fato consumado. Direitos e julgamentos proferidos depois dela passaram a vigorar e se tornaram imutáveis, tal como acontece com o direito adquirido, com o ato jurídico perfeito e acabado e com a coisa julgada. O interesse da falta de votação está entre o curioso e o episódico. Quanto aos efeitos, não há o que fazer. O povo, titular de todo o poder, aprovou uma Constituição e gosta de tê-la aplicada, ainda que apresentando defeitos.


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