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LETRAS JURÍDICAS
Voto na Constituição sem votos
WALTER CENEVIVA
COLUNISTA DA FOLHA
O aniversário de pessoas, documentos ou fatos
dá boa oportunidade para examinar sua história. É o que estou
fazendo, nesta coluna, durante
outubro, em virtude dos 15 anos
da Constituição de 1988. A ordem
lógica dos assuntos fica, porém,
alterada por influência das notícias de que alguns dispositivos da
Carta não foram aprovados em
regular votação dupla ou mesmo
estão em vigor sem nenhuma
votação.
Vendo as coisas com olhos da
pureza mais pura, do formalismo
mais exigente, a irregularidade é
muito lamentável. A Constituição
é o documento fundamental da
nação e a lei básica sobre a qual
se suportam todas as outras leis.
Não deveria ter acontecido, mas
aconteceu. "Et maintenant, que
vais je faire?", perguntaria Gilbert
Becaud. E agora?
Para a resposta, recordo duas
questões, uma prática e outra teórica. Esta fica para o fim. A questão prática está permanentemente no trabalho de quem escreva
com tempo certo de fechamento,
em drama diário dos jornais. Nas
revistas semanais, surge uma vez
a cada sete dias. Limite de fechamento leva à loucura, sobretudo
quando, de repente, se descobre a
manchete errada, a informação
mal apurada, o fato mudado por
acontecimento de última hora.
Pois bem, a criação das leis não
escapa desse destino fatal e angustiante. Em 1988, quase ocorreu
um desastre técnico quando o
texto final da Carta atribuía ao
Tribunal do Júri competência para julgamento dos crimes contra a
vida. "Peraí!", gritou alguém. O
grito era prudente, pois, se mantida a redação, até atropelamentos,
até acidentes do trabalho com
morte teriam de ser submetidos
ao tribunal popular. Acrescentou-se, depois de "crimes", o adjetivo
"dolosos", para caracterizar delitos em que o agente tem a intenção de matar a vítima. Salvou-se
o texto. Desde então, houve revisões, emendas, com milhões de
atos confirmadores da Carta
em bloco.
Na excelente súmula que a Folha publicou anteontem, lembrou-se o erro que ia sendo cometido no processo legislativo do artigo 59: descobriu-se que não referia as medidas provisórias, embora estivessem indicadas no artigo
62. As tais medidas foram incluídas no artigo 59, aparentemente
sem votação apropriada. Prejudicou-se a forma. Salvou-se a
substância.
Supondo que as omissões noticiadas, do voto regular, sejam
confirmadas, qual o resultado para a lei brasileira? Para responder, recordemos que a Constituição foi jurada na Assembléia Nacional Constituinte. Criou o Estado democrático de Direito na República Federativa do Brasil. Sucessivas emendas e republicações
consolidaram a versão final. Adquiriram validade e eficácia, com
aptidão plena para produzir efeitos de direito. Algumas normas
dependiam de leis posteriores.
Outras, servindo de exemplo o artigo 5º, entraram em vigor no próprio dia 5 de outubro, dando inviolabilidade à garantia dos direitos fundamentais.
Nestes 15 anos, a Constituição
vem sendo aplicada tal como publicada. Deu origem a Constituições estaduais, submetidas aos
seus princípios básicos, mesmo
com liberdade de ajuste às condições locais. É o que se chama fato
consumado. Direitos e julgamentos proferidos depois dela passaram a vigorar e se tornaram imutáveis, tal como acontece com o
direito adquirido, com o ato jurídico perfeito e acabado e com a
coisa julgada. O interesse da falta
de votação está entre o curioso e o
episódico. Quanto aos efeitos, não
há o que fazer. O povo, titular de
todo o poder, aprovou uma Constituição e gosta de tê-la aplicada,
ainda que apresentando defeitos.
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