São Paulo, Domingo, 13 de Junho de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Manual de solidariedade
na desgraça

FERNANDO BONASSI
Colunista da Folha

Quem nunca usou metrô pra ir além da rodoviária do Tietê não faz idéia; quem vai a Santana, faz de conta que não vê; mas quem desce na estação Carandiru não pode evitar. Os prédios de cimento enegrecido da Casa de Detenção erguem-se mais altos do que a vontade de evitá-los. Ainda assim, até agora, mesmo ali na avenida Cruzeiro do Sul, a maioria podia apenas imaginar o que se passava além daqueles portões. Mas os dias de ignorância da paulistada acabaram. "Estação Carandiru" está pronto.
São dez anos de medicina, em plena virada do século 21, praticados com métodos do século 16. Não há tempo, dinheiro (e afinal, quem se importa?) para exames e radiografias. É tudo no olho e na sensibilidade! Há duas semanas, visitando doutor Drauzio na enfermaria do Pavilhão Quatro, tive uma vaga noção dessa "clínica maluca", mantida por um profundo sentimento de solidariedade enquanto atendia um doente de Aids, pesando no máximo trinta quilos, o médico/autor o amparava pelas costas, dobrando-o, tentando aliviar o enorme esforço que o paciente fazia para, simplesmente, respirar.
A "meca da malandragem", com suas mais de 7.000 pessoas, tem fama de inferno na terra. De um ponto de vista criminológico, não resta dúvida que é, e só mesmo o desleixo de uma elite que se deixa blindar dentro de seus BMWs pode explicar.
Acontece que, se a loucura funciona minimamente, isso se deve aos presos. São eles que executam quase todos os serviços de manutenção e limpeza, além de cuidar de boa parte da precária assistência jurídica. A comida, para a maioria intragável, é reforçada por doações das próprias famílias, tão ou mais miseráveis quanto os próprios detentos (será que é isso que chamam de privatização?).
Não é mesmo um mundo dourado, mas se engana quem imagina promiscuidades inomináveis. Há regras. Elas não são escritas, mas todo mundo as conhece. Para o bem e para o mal, tudo é "na palavra", dimensão ética da existência desconhecida pra nós, "deste lado das grades". Esse pacto moral é tão forte que contagia quem quer que se digne a visitar a casa. A prisão, para muitos dos seus habitantes, é a primeira e única noção de lar, um lugar onde podem dispor de uma consideração mútua da qual jamais usufruíram em liberdade.
Lidar, literariamente, com um universo cultural tão complexo seria uma tarefa assustadora para qualquer escritor. O que impressiona em "Estação Carandiru" é a simplicidade com que o autor desvenda o caos. Uma simplicidade que a maioria dos literatos passa décadas procurando e raramente encontra. O texto flui entre crueldade e delicadeza com a mesma decência e isenção.
Num país em que "expressão" parece ser hobby de funcionários públicos, foi preciso que as memórias de um médico desprovido de qualquer veleidade literária viessem nos mostrar que o maior espetáculo de todos continua mesmo sendo a grande insanidade da vida.
Não há como não ler. Não é comum que tal índice de vitalidade se encontre num só volume por essas bandas...


Fernando Bonassi é escritor e roteirista. Desde maio, desenvolve um trabalho de estímulo à criação literária entre os presos da Casa de Detenção de São Paulo.

Avaliação: ótimo
Livro: Estação Carandiru
Autor: Drauzio Varella
Editora: Companhia das letras
Preço: R$ 26 (297 páginas)


Texto Anterior: Trecho
Próximo Texto: Musa do impeachment aconselha musa da CPI
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.