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Manual de solidariedade
na desgraça
FERNANDO BONASSI
Colunista da Folha
Quem nunca usou metrô pra ir
além da rodoviária do Tietê não faz
idéia; quem vai a Santana, faz de
conta que não vê; mas quem desce
na estação Carandiru não pode
evitar. Os prédios de cimento enegrecido da Casa de Detenção erguem-se mais altos do que a vontade de evitá-los. Ainda assim, até
agora, mesmo ali na avenida Cruzeiro do Sul, a maioria podia apenas imaginar o que se passava além
daqueles portões. Mas os dias de
ignorância da paulistada acabaram. "Estação Carandiru" está
pronto.
São dez anos de medicina, em
plena virada do século 21, praticados com métodos do século 16.
Não há tempo, dinheiro (e afinal,
quem se importa?) para exames e
radiografias. É tudo no olho e na
sensibilidade! Há duas semanas,
visitando doutor Drauzio na enfermaria do Pavilhão Quatro, tive
uma vaga noção dessa "clínica maluca", mantida por um profundo
sentimento de solidariedade enquanto atendia um doente de Aids,
pesando no máximo trinta quilos,
o médico/autor o amparava pelas
costas, dobrando-o, tentando aliviar o enorme esforço que o paciente fazia para, simplesmente,
respirar.
A "meca da malandragem", com
suas mais de 7.000 pessoas, tem fama de inferno na terra. De um
ponto de vista criminológico, não
resta dúvida que é, e só mesmo o
desleixo de uma elite que se deixa
blindar dentro de seus BMWs pode explicar.
Acontece que, se a loucura funciona minimamente, isso se deve
aos presos. São eles que executam
quase todos os serviços de manutenção e limpeza, além de cuidar
de boa parte da precária assistência jurídica. A comida, para a
maioria intragável, é reforçada por
doações das próprias famílias, tão
ou mais miseráveis quanto os próprios detentos (será que é isso que
chamam de privatização?).
Não é mesmo um mundo dourado, mas se engana quem imagina
promiscuidades inomináveis. Há
regras. Elas não são escritas, mas
todo mundo as conhece. Para o
bem e para o mal, tudo é "na palavra", dimensão ética da existência
desconhecida pra nós, "deste lado
das grades". Esse pacto moral é tão
forte que contagia quem quer que
se digne a visitar a casa. A prisão,
para muitos dos seus habitantes, é
a primeira e única noção de lar, um
lugar onde podem dispor de uma
consideração mútua da qual jamais usufruíram em liberdade.
Lidar, literariamente, com um
universo cultural tão complexo seria uma tarefa assustadora para
qualquer escritor. O que impressiona em "Estação Carandiru" é a
simplicidade com que o autor desvenda o caos. Uma simplicidade
que a maioria dos literatos passa
décadas procurando e raramente
encontra. O texto flui entre crueldade e delicadeza com a mesma
decência e isenção.
Num país em que "expressão"
parece ser hobby de funcionários
públicos, foi preciso que as memórias de um médico desprovido de
qualquer veleidade literária viessem nos mostrar que o maior espetáculo de todos continua mesmo
sendo a grande insanidade da vida.
Não há como não ler. Não é comum que tal índice de vitalidade se
encontre num só volume por essas
bandas...
Fernando Bonassi é escritor e roteirista. Desde
maio, desenvolve um trabalho de estímulo à
criação literária entre os presos da Casa de Detenção de São Paulo.
Avaliação: ótimo
Livro: Estação Carandiru
Autor: Drauzio Varella
Editora: Companhia das letras
Preço: R$ 26 (297 páginas)
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