São Paulo, domingo, 13 de julho de 2008

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"Culpa do outro" causa ira em motoristas

Lentidão, semáforos demorados, buzinas, carros colados na traseira e fechadas são motivo de descontrole no trânsito

"Poder" que o carro oferece permite extravasar emoções, afirma psiquiatra; presença de transtorno compulsivo pode causar situação de violência


DA REPORTAGEM LOCAL

Nem só de transtornos de impulso sobrevive a raiva no trânsito em metrópoles como São Paulo. Para especialistas ouvidos pela Folha, há uma série de situações que causam o descontrole que pode culminar em agressão, sempre vistas como culpa alheia: lentidão por "excesso de veículos" ou semáforos de tempo longo; obras em vias públicas ou blitze; xingamentos, buzinas, fechadas; carros colados nas traseiras ou até mesmo outros caindo aos pedaços -tudo traz estresse e, conseqüentemente, raiva.
"E o carro dá poder e permite o extravasamento de emoções no trânsito, inclusive da raiva que se traz de casa ou trabalho", diz Júlio Cesar Rosa, psiquiatra da Associação Brasileira de Medicina do Tráfego. Não que toda pessoa com comportamento raivoso tenha necessariamente um transtorno impulsivo, afirma. "Mas as que têm podem ser perigosas e deviam buscar tratamento."
O pior dos mundos, diz Rosa, é quando se chega à conjunção de três fatores: o carro servir de objeto de poder que torna o motorista "senhor da razão"; o trânsito servir para canalizar e extravasar a raiva anterior; e a presença de um transtorno impulsivo. "Aí, sim, tem-se um prato cheio para a violência."
Opinião que vai ao encontro do resultado que o psicólogo Luis Alberto Presa obteve em uma pesquisa com 180 motoristas de Porto Alegre, utilizando um "inventário de estado-traço de raiva" para medir a agressividade do comportamento no trânsito. E ele afirma: "Há uma associação direta entre sentimento raivoso e incidência de infrações."

Pedestre x motorista
"O clima no trânsito é o de um campo de batalha", onde o comportamento agressivo está ligado ao embate entre o interesse pessoal do motorista (chegar) e o interesse público (segurança). Mas ninguém se sente protagonista desse caos.
É o que aponta uma outra pesquisa, do Detran-ES, com 500 motoristas do Espírito Santo, finalizada no começo deste ano e coordenada pelo antropólogo Roberto DaMatta.
A análise, qualitativa, baseada nas respostas dos motoristas, indica que a agressividade no trânsito tem "uma base social" -o conflito entre privado e público. Isso porque, diferentemente do resto da sociedade, o trânsito seria um lugar de "igualdade forçada", onde todos têm as mesmas chances de acelerar ou ter de esperar.
"Você está num BMW e olha para o lado e tem um carinha que acabou de comprar um carro", sugere DaMatta. "Aí, quando você tenta usar o velho "sabe com quem está falando?", no trânsito, isso acaba em acidente." E o pior "é que o anonimato garante a impunidade", diz.
"A via pública, que é um local de igualdade, suscita uma disputa entre os usuários", concorda a diretora-geral do Detran-ES, Luciene Becacici. "É onde o motorista se sente superior aos demais, como se o carro fosse um espaço privativo dentro do qual ele faz a própria lei". Se essa lei é transgredida, a resposta pode parecer desproporcional. É que "ele reage como se aquela fechada, aquela agressão fosse pessoal, fosse contra o próprio corpo."
Por outro lado, o motorista, ao andar a pé, critica os outros -aí eles são barbeiros, irresponsáveis, perigosos. "Quando se está nas calçadas, critica-se o veículo que passa perto dos nosso filhos no canteiro, é a posição de pedestre", diz Becacici. "Mas amanhã ele vai entrar no veículo, e o carro vai transformá-lo em um cidadão reativo."
É como o desenho que sempre funciona para deixar o motorista culpado por alguns minutos. O personagem Pateta, dos estúdios Walt Disney, é um cidadão pacato e pedestre cauteloso, que, de repente, se transforma num monstro, no exato momento em que assume o volante do carro. Chamado "Loucuras no Trânsito", o episódio é de 1950, mas ainda serve nas palestras sobre psicologia no trânsito feitas por Luis Alberto Presa. (WV)

SAIBA MAIS
Inscrições para o grupo de TEI do Hospital das Clínicas podem ser feitas pelo telefone 0/xx/ 11/3069-6975, de preferência às quartas, das 10h às 16h; o tratamento dura 20 semanas


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