São Paulo, Segunda-feira, 14 de Junho de 1999
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EVENTO FOLHA
A arte de pitanguizar

MOACYR SCLIAR
Colunista da Folha


Em fins de dezembro de 1998, a revista "Médicos", do Hospital das Clínicas da USP, fez uma enquete entre vários e respeitados profissionais para listar os médicos brasileiros do século. A maior parte dos escolhidos era da área da saúde pública, como Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, ou da pesquisa, como Rocha e Silva. De outra parte, havia dois cirurgiões cardiovasculares, Euryclides Zerbini e Adib Jatene, e um cirurgião plástico, Ivo Pitanguy. Essa aparente polarização ilustra, de um lado, as surpreendentes possibilidades do Brasil, o legítimo país dos contrastes; de outro, a aura de respeito e admiração que envolve a figura do doutor Pitanguy.
Há, em relação à cirurgia plástica, um preconceito muito difundido: o de que é uma especialidade voltada para o embelezamento e o rejuvenescimento de socialites. Um preconceito que Pitanguy vem combatendo ao longo de sua notável carreira. Que, aliás, fala por si. Nascido em Belo Horizonte, formou-se em medicina pela Universidade do Brasil (atual UFRJ) e especializou-se em cirurgia plástica em hospitais de Cincinatti, Nova York e na Mayo Clinic (Minnesota). Completou essa formação com estágios em vários serviços europeus, em Paris, Londres e outras cidades. De volta ao Brasil, fundou a primeira clínica de cirurgia da mão, na Santa Casa de Misericórdia do Rio; idealizou, organizou e chefiou o Serviço de Queimados do Hospital Antônio Pedro, criado quando do trágico incêndio do Gran Circo Norte-Americano, em Niterói, em 1961.
O que nos traz de volta ao estereótipo acima mencionado. A cirurgia estética é apenas um componente da cirurgia plástica -e um componente não desprezível quando se considera a baixa da auto-estima e o sofrimento causado por deformidades que, muitas vezes, não são de pequena monta.
Mas os serviços criados por Pitanguy mostram que não é só esse o campo de seu interesse. Queimaduras são uma importante causa de morte e de invalidez em nosso país. Quanto à mão, basta pensar que ela é um instrumento básico de nossa humanidade, aquilo que permitiu ao homem o trabalho e o progresso técnico. Ou seja: Pitanguy opera tanto celebridades do jet-set mundial como pessoas humildes, que provavelmente nem teriam como pagar uma consulta e precisam da cirurgia para trabalhar ou para sobreviver. Não o faz para melhorar sua imagem (seguramente não precisa disso), mas simplesmente porque é o que gosta de fazer, aquilo em que acredita.
Isso explica o reconhecimento mundial que tem recebido; ao longo do tempo, muitas instituições distinguiram-no com homenagens e condecorações. E explica a dimensão humanista de sua obra, expressa nos livros que escreve e na promoção que faz dos aspectos psicológicos e sociais da cirurgia plástica e da medicina em geral.
Dessas homenagens, a mais original talvez lhe tenha sido feita por Vinicius de Moraes, que criou um neologismo: "pitanguizar". Pitanguy é grande porque pitanguiza. E é maior ainda porque não pitanguiza só narizes famosos. Pitanguypitanguizou, pelo mundo, muita gente que conjugou, com respeito, um verbo que significa competência e grandeza pessoal.


Moacyr Scliar, 62, é médico, especialista em saúde pública, e escritor, autor de "A Paixão Transformada: História da Medicina na Literatura" (Companhia das Letras).


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