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EVENTO FOLHA
A arte de pitanguizar
MOACYR SCLIAR
Colunista da Folha
Em fins de dezembro de 1998,
a revista "Médicos", do Hospital das Clínicas
da USP, fez uma
enquete entre
vários e respeitados profissionais para listar os
médicos brasileiros do século. A
maior parte dos escolhidos era da
área da saúde pública, como Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, ou da
pesquisa, como Rocha e Silva. De
outra parte, havia dois cirurgiões
cardiovasculares, Euryclides Zerbini e Adib Jatene, e um cirurgião
plástico, Ivo Pitanguy. Essa aparente polarização ilustra, de um lado, as surpreendentes possibilidades do Brasil, o legítimo país dos
contrastes; de outro, a aura de respeito e admiração que envolve a figura do doutor Pitanguy.
Há, em relação à cirurgia plástica, um preconceito muito difundido: o de que é uma especialidade
voltada para o embelezamento e o
rejuvenescimento de socialites.
Um preconceito que Pitanguy vem
combatendo ao longo de sua notável carreira. Que, aliás, fala por si.
Nascido em Belo Horizonte, formou-se em medicina pela Universidade do Brasil (atual UFRJ) e especializou-se em cirurgia plástica
em hospitais de Cincinatti, Nova
York e na Mayo Clinic (Minnesota). Completou essa formação com
estágios em vários serviços europeus, em Paris, Londres e outras
cidades. De volta ao Brasil, fundou
a primeira clínica de cirurgia da
mão, na Santa Casa de Misericórdia do Rio; idealizou, organizou e
chefiou o Serviço de Queimados
do Hospital Antônio Pedro, criado
quando do trágico incêndio do
Gran Circo Norte-Americano, em
Niterói, em 1961.
O que nos traz de volta ao estereótipo acima mencionado. A cirurgia estética é apenas um componente da cirurgia plástica -e
um componente não desprezível
quando se considera a baixa da auto-estima e o sofrimento causado
por deformidades que, muitas vezes, não são de pequena monta.
Mas os serviços criados por Pitanguy mostram que não é só esse
o campo de seu interesse. Queimaduras são uma importante causa
de morte e de invalidez em nosso
país. Quanto à mão, basta pensar
que ela é um instrumento básico
de nossa humanidade, aquilo que
permitiu ao homem o trabalho e o
progresso técnico. Ou seja: Pitanguy opera tanto celebridades do
jet-set mundial como pessoas humildes, que provavelmente nem
teriam como pagar uma consulta e
precisam da cirurgia para trabalhar ou para sobreviver. Não o faz
para melhorar sua imagem (seguramente não precisa disso), mas
simplesmente porque é o que gosta
de fazer, aquilo em que acredita.
Isso explica o reconhecimento
mundial que tem recebido; ao longo do tempo, muitas instituições
distinguiram-no com homenagens e condecorações. E explica a
dimensão humanista de sua obra,
expressa nos livros que escreve e
na promoção que faz dos aspectos
psicológicos e sociais da cirurgia
plástica e da medicina em geral.
Dessas homenagens, a mais original talvez lhe tenha sido feita por
Vinicius de Moraes, que criou um
neologismo: "pitanguizar". Pitanguy é grande porque pitanguiza. E
é maior ainda porque não pitanguiza só narizes famosos. Pitanguypitanguizou, pelo mundo,
muita gente que conjugou, com
respeito, um verbo que significa
competência e grandeza pessoal.
Moacyr Scliar, 62, é médico, especialista em
saúde pública, e escritor, autor de "A Paixão
Transformada: História da Medicina na Literatura" (Companhia das Letras).
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