São Paulo, domingo, 14 de julho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

VIOLÊNCIA

Nando, 19, foi morto em Cidade Tiradentes, 3º lugar no ranking das áreas de maior risco de contágio pela criminalidade

Na periferia, ver amigo morrer é quase rotina

Tuca Vieira/Folha Imagem
Reinaldo Nascimento (à esq.), que fez curso de cooperativismo em entidade de Cidade Tiradentes


DA REPORTAGEM LOCAL

Nando e Reinaldo eram amigos inseparáveis. Em comum, a adolescência pobre e violenta em Cidade Tiradentes - área de grau máximo de vulnerabilidade no extremo leste do município de São Paulo - e a atração pelo rap. De diferente, a visão sobre o mundo do tráfico de drogas.
Reinaldo tem 17 anos. Nando tinha 19. Morreu em uma chacina em janeiro deste ano, em um acerto de contas entre traficantes do distrito que ocupa o terceiro lugar no ranking da Seade entre as áreas de maior risco de contágio pela violência.
O corpo de Nando foi encontrado na rua, perfurado por vários tiros à queima-roupa. Ao lado, o corpo do amigo de 18 anos, o alvo da vingança. Dias antes, ele teria matado o integrante de uma quadrilha rival.
Cinco meses depois da morte do parceiro, Reinaldo Batista Nascimento, o rapper Reinaldo, se formou no curso de cooperativismo na noite da última quinta-feira. ""Aquilo não é vida. Quero é viver sossegado", disse ele, sobre a escolha que fez, oposta a do amigo Nando.
Chovia muito quando Reinaldo e mais de cem jovens tentavam se acomodar na pequena sede da ACT (Ação Comunitária Tiradentes), uma das poucas entidades filantrópicas que atuam em Cidade Tiradentes. As quatro salas da ACT são insuficientes para atender os 350 jovens atuais e a longa fila de espera.
"Pode não dar emprego, mas pelo menos aumenta a auto-estima", afirmou o rapper, com o certificado na mão.
Ex-perueiro clandestino, hoje desempregado, pai de uma filha de dois anos e morando com o pai aposentado -que tem pensão de R$ 450- , Reinaldo perdeu as contas dos convites, feitos nas esquinas do bairro, para entrar no tráfico ou cometer assaltos.
Em vez disso, preferiu se tornar um "agente jovem", fazer cursos e realizar trabalhos comunitários. Pela opção, recebe ajuda de custo mensal de R$ 65. "Vou vencer. Pode não ser agora, mas vou vencer", disse o rapper, que estuda na 2ª série do ensino médio.
Por quase sete anos, Nando e Reinaldo colocaram nas letras de rap a frustração pela falta de dinheiro, de alternativas de lazer e de cultura e de oportunidades de emprego. "Este lugar está morto, não tem nada aqui."
Mas foi somente no ano passado que a decepção ultrapassou o limite dos versos que escreviam. Nando passou a falar das vantagens do tráfico. Insistiu para que o parceiro o acompanhasse.
"As letras do rap falam sobre como tudo isso acaba e, mesmo assim, ele decidiu seguir. Acho que ele queria ibope, ser conhecido", disse Reinaldo.

Vingança
Nando sabia qual seria seu destino, tanto que propagava aos conhecidos que, caso fosse morto, ""seus comparsas o vingariam". Falsa idéia de união. "Nem isso aconteceu", afirmou Reinaldo.
A história da dupla não é exceção no bairro, em cuja região está a quarta maior taxa de homicídio da capital: 95,08 por 100 mil habitantes em 2001, segundo dados do Pro-Aim (Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade), da Prefeitura de São Paulo.
"Todos os dias, muitos jovens batem na nossa porta querendo uma alternativa para fugir do crime. Minha frustração é não ter vagas para todos", disse Maria da Graça dos Reis, 52, presidente da ACT. A entidade fechou as inscrições quando a fila de espera chegou a 200 nomes.
Moram em Cidade Tiradentes 20.773 jovens com idades de 15 a 19 anos -11% da população do lugar-, segundo censo do IBGE de 2000.
Outros indicadores listados pela Seade mostram por que o distrito entrou para grupo de maior vulnerabilidade juvenil. A região está entre as mais densamente ocupadas, que mais cresceram na última década, com grande concentração de chefes de família que ganham pouco (até R$ 750) e de jovens de 18 e 19 anos que não concluíram o ensino fundamental.
Com várias passagens pela Febem, o rapper Rinaldo Emílio de Andrade, o Rinea, 35, morador da região, garante que sempre há uma saída.
Com participações em CDs dos "Racionais", ele tem dificuldade para manter os quatro filhos, mas disse que consegue viver do rap. "O segredo é não se envolver com o crime. É fazer o seu trabalho e não fazer inimigos." (GILMAR PENTEADO E ALESSANDRO SILVA)


Texto Anterior: Violência: "Contágio" pelo crime ameaça extremos de SP
Próximo Texto: Seis variáveis formam novo indicador
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.