São Paulo, quarta-feira, 14 de julho de 2010

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GILBERTO DIMENSTEIN

Memórias do subsolo


Estima-se em cem o número de famílias na fila para adotar uma criança branca recém-nascida


APESAR DE já ter três filhos, um médico resolveu adotar uma menina. Anos depois, ele adoeceu gravemente e precisava de um rim. Não se encontrava ninguém compatível entre filhos, primos e tios.
À medida que o tempo passava, o desespero aumentava, numa contagem regressiva. Descobriram, enfim, que o melhor doador estava ao seu lado, embora não tivesse o sangue familiar. Era a própria filha adotiva, que, desde o início da doença, vinha insistindo para fazer os exames, mas não era ouvida.
Essa e muitas histórias de crianças adotadas, inverossímeis se fossem ficção, entraram no cotidiano da atriz Mika Lins -e, agora, ela quer levá-las para a tela.
Isso porque Taciane, uma criança adotada, entrou com ainda mais força na vida da atriz, fazendo-a mergulhar num universo que lhe era desconhecido. "Senti que precisava compartilhar minhas descobertas."
Já está em fase de preparação o roteiro de um documentário focado na adoção de crianças já grandes, como Taciane, que, na maioria das vezes, são esquecidas.
Também em contagem regressiva, Mika, aos 40 anos, tentava engravidar, mas, depois de sofrer uma série de complicações decorrentes do tratamento, seu marido (o publicitário Sérgio Glasberg) convenceu-a a adotar uma criança. Na mesma época, ele começava a preparar a adaptação das "Memórias do Subsolo", de Dostoiévski, cujo tema são as escolhas que fazemos na vida.
Na preparação para tornar-se mãe adotiva, ela leu textos de especialistas, conversou com juízes e psicólogos, participou de grupos de ajuda virtuais e presenciais. Percebeu que era uma exceção. "Eu não fazia questão de adotar uma criança branca recém-nascida."
Deparou-se, então, com a realidade de crianças rejeitadas por não serem mais bebês. Com mais de dois anos de idade, são consideradas velhas. "O objeto de desejo é uma menina, recém-nascida e branca." Estima-se em cem o número de famílias dispostas a ficar anos em uma fila para adotar uma criança com essas características.
À medida que ia se apegando a Taciane -"Acabei sentindo como se aquele ser tivesse mesmo saído do meu corpo"-, Mika passou a ficar mais atenta aos segredos da adoção. Soube que, no Brasil, há cerca de 80 mil crianças e adolescentes em abrigos. A maioria fica até os 18 anos nesses espaços e, depois, é jogada no mundo, numa segunda orfandade. "Vi que isso ocorre sobretudo por preconceito."
O preconceito é o que orienta o roteiro do documentário. Mas não é só. "Quero mostrar o encantamento e o aprendizado dos pais adotivos, a enorme felicidade deles." É o caso do médico salvo pelo rim e de um menino negro adotado por um casal de judeus. Hoje professor de medicina, ele se sente herdeiro do humor judaico: conta que nasceu pobre, foi abandonado pela família, é negro e, depois, virou judeu.
A filha trouxe para Mika, além da magia da maternidade, as memórias da infância. A atriz matriculou-a na mesma escola em que estudara, a Vera Cruz, e viu Taciane provocar a curiosidade dos coleguinhas quando, num dos primeiros dias de aula, a menina virou o centro das atenções ao dizer: "Sou adotada."


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