São Paulo, segunda-feira, 14 de agosto de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MOACYR SCLIAR

Casal a bordo

Cada viagem era um suplício; não relaxava, ficava o tempo todo de olhos arregalados, vigiando as aeromoças.

Porta de avião da TAM cai durante vôo para o Rio. A porta da frente de um avião Fokker 100 da TAM caiu durante um vôo para o aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, que decolou às 13h47 do aeroporto de Congonhas, em São Paulo. De acordo com a assessoria da empresa, a porta caiu em um supermercado da rede Extra na avenida Ricardo Jafet, no Ipiranga, zona sul de São Paulo. Não houve feridos. "Todo mundo entrou em pânico. Uma aeromoça que estava perto da porta ficou toda descabelada, se segurando para não cair do avião", conta a estudante Camila Silva, 24 anos. Folha Online, 8 de agosto.

Depois de muito tempo, o casal ia viajar junto, de avião. Uma perspectiva que ao marido, na verdade, não agradava muito.
Viajante habitual, com uma milhagem de fazer inveja a qualquer alto executivo, o avião era para ele coisa de rotina: gabava-se até de conhecer os comandantes pelo nome. Mas com a mulher era diferente. Porque a coitada tinha medo de avião. Pânico, para dizer a verdade. Cada viagem era um suplício; não relaxava, ficava o tempo todo de olhos arregalados, vigiando as aeromoças e interpretando qualquer solavanco como sinal de um desastre imediato.
Quem pagava o pato era o marido, claro: ela não o deixava em paz. De modo que, tão logo tomaram assento, ele abriu o jornal e mergulhou na leitura, o que implicava um recado muito claro: mulher, não me encha o saco.
Logo depois da decolagem, contudo, ela o cutucou: estou sentindo um vento muito forte, disse. Ele, sem tirar os olhos do jornal, replicou: - Ora, mulher. Isto é o sistema de refrigeração do avião. Você não notou que está fazendo muito calor?
Por favor, me deixe ler o jornal.
Por alguns segundos ela ficou em silêncio. Mas logo em seguida voltou à carga:
- Estou achando estranho aquela aeromoça lá na frente.
- Ai meu Deus -gemeu ele. - Já vi que ler este jornal será missão impossível. O que há de errado com a aeromoça?
- Está toda descabelada.
- E daí? Vai ver que isso agora é da moda, andar descabelada. Problema dela, mulher. Por favor, me deixe ler o jornal.
Voltou à leitura. Mas 30 segundos depois ela agarrou o braço dele:
- Desculpe lhe incomodar, mas o avião está com a porta aberta. Tenho certeza de que está com a porta aberta.
Ele teve de rir:
- Claro, mulher. Então você não sabe que agora é rotina? Antes mesmo de o avião pousar eles já vão abrindo a porta. É para facilitar o desembarque, entendeu? Assim a gente ganha tempo.
Ela hesitou:
- É que o pessoal parece meio assustado...
Pela primeira vez, desde que haviam decolado, ele tirou os olhos da página impressa . E aí começou a gritar:
- Meu Deus! O avião está com a porta aberta! Faz alguma coisa, mulher, pelo amor de Deus, faça alguma coisa! Reze! Você que é religiosa, reze para todos os seus santos!
Ela tentava, inutilmente, acalmá-lo. Mas não o conseguiu. Quando o avião pousou, felizmente sem problemas, ele estava em estado de choque. E bradava, para quem quisesse ouvir, que daí em diante só voaria no 14-Bis, do Santos Dumont. Um avião que, pelo menos, não tinha porta.


MOACYR SCLIAR escreve, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha

Texto Anterior: 32 detentos que saíram no Dia dos Pais são presos
Próximo Texto: Consumo: Supermercado cobra fatura de cartão já paga, diz consumidora
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.