São Paulo, domingo, 15 de janeiro de 2006

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GILBERTO DIMENSTEIN Cidades do coração

O publicitário Ferrer Viana comandou uma das mais eficazes campanhas de que se tem notícia de mobilização para a melhoria de uma cidade. O marketing foi fundamental na transformação de Barcelona, na Espanha, num laboratório de criatividade comunitária, admirado e estudado mundialmente.
Cada habitante se sentiu protagonista do movimento, iniciado na década de 1980. Não houve um único segmento da comunidade que tivesse ficado de fora. Para estimular doações, os meios de comunicação, por exemplo, fizeram um acerto tácito para destacar nas matérias o nome das empresas que patrocinassem a recuperação de áreas públicas ou do patrimônio histórico. A Universidade de Barcelona colocou à disposição seus mais sofisticados acadêmicos, a começar pelos arquitetos e urbanistas. Os mais importantes artistas, dos eruditos aos populares, ofereceram gratuitamente seu prestígio.
Ferrer vai relatar detalhes desse caso de sucesso, na próxima terça-feira, em São Paulo, para estudantes, professores e servidores públicos. Ao entendermos o sucesso de Barcelona, entendemos também o drama da cidade de São Paulo -e, por tabela, o de José Serra.
A engenhosidade publicitária só funcionou porque havia, antes de mais nada, prefeitos que colocaram Barcelona em primeiríssimo lugar. Juntem-se a isso outros fatores, como o planejamento urbano e o notável impulso dado pelas Olimpíadas que ocorreram em Barcelona. Mas, sem o exemplo de cima, dificilmente se conseguiria ir tão longe.
Não vai aqui nenhuma novidade sobre o poder mobilizador dos governantes que conseguem entusiasmar a opinião pública. Esse poder cresce ainda mais quando se vêem os resultados concretos e se afastam os temores de manipulação. Está em exibição em Nova York uma exposição sobre o papel de Ed Koch como um de seus prefeitos. Ele foi eleito quando a cidade estava quebrada -quebrada mesmo, sem crédito na praça para pagar suas dívidas. A exposição mostra, em detalhes, como ele se dispôs a tomar medidas duríssimas de cortes em gastos públicos e, depois, conseguiu se reeleger para mais mandatos. Encarnou o espírito empreendedor e ousado do nova-iorquino, sintetizando seus encantos e dores.
Não se consegue entender a revitalização de Nova York, tão visível nas ruas, sem passar por esse período, quando, aliás, se criou aquele slogan "Eu amo Nova York", no qual a palavra amo é substituída pelo desenho de um coração.
Justamente nisso -na cidade e no coração- está o drama de Serra e de São Paulo.
Já disse aqui e repito. Se tivesse de fazer uma lista com os 20 brasileiros mais preparados para assumir a Presidência da República, colocaria, sem hesitar, o nome de Serra. Duvido que até mesmo os mais aguerridos de seus desafetos não o colassem nessa hipotética lista.
É compreensível que Serra queira ser candidato a presidente. Desde bem jovem, ainda no exílio, nutre esse sonho. Sente-se (e com razão) preparado para o cargo. E, acima de tudo, as pesquisas de intenção de voto colocam-no, neste momento, como o mais forte postulante na disputa ao Palácio do Planalto. Provavelmente é agora ou nunca.
Vou além. Ele ainda tem pouco o que mostrar como prefeito. Mas o que já foi feito em um ano estabelece linhas de uma possível gestão inovadora.
Mas o fato é que Serra, involuntariamente ou não, está transmitindo o sinal de que São Paulo não é o que agarra o seu coração. Estaria no cargo apenas por uma contingência, à espera de Brasília. É um sinal que provoca um enorme poder desmobilizador dentro e fora de seu governo.
A cidade de São Paulo é um laboratório do caos. Pagamos, todos os dias, o preço da incompetência. Serra foi eleito na expectativa de que seu status de presidenciável ajudaria no enfrentamento do caos, prestando-se como uma síntese das aspirações de uma coletividade, acuada pelo trânsito, pelas enchentes, pela poluição visual, pela violência. Sua própria história de vida é sintética dos paulistanos: o filho de feirantes e de imigrantes na zona leste, estudante de escola pública, que fez sucesso.
Talvez, se ele sair candidato, até consiga fazer com que as pessoas esqueçam de sua promessa e do documento que ele entregou nas minhas mãos comprometendo-se a ficar até o final de seu mandato na prefeitura. Talvez, se vencer, todos se esqueçam ainda mais rapidamente, afinal o sucesso e o poder combinados são um santo remédio para a memória.
Mas, mesmo se vencer, ficará sempre a sensação de que São Paulo ficou em segundo plano e serviu de trampolim. Isso, obviamente, vai retardar um movimento que já existe de renascimento, graças à efervescência comunitária, potencializada em cidades como Nova York e Barcelona.
Caso não consiga sair candidato à Presidência, ele terá de reverter o final, recuperar o tempo perdido e fazer um esforço para mostrar que São Paulo está em primeiro lugar. Não vai aqui nenhum provincianismo: o desenvolvimento social brasileiro depende mais de as cidades terem prefeitos capazes de fazer inovações locais -afinal, as pessoas não vivem no Estado nem na União, mas nas cidades- do que da suposta genialidade de um presidente.
Não existe a possibilidade de um Brasil desenvolvido e de seu coração econômico ficar infartado.

P.S- Coloquei em meu site (www.dimenstein.com.br) texto do publicitário Ferrer Viana sobre Barcelona. Pela importância da articulação comunitária no desenvolvimento das nações, considero esse texto leitura obrigatória.


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