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Apostar cervejas contra o código de trânsito
MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas
Era para ser uma infração gravíssima matar uma pessoa em
acidente de carro. Gravíssimo dirigir bêbado ou em alta velocidade. Gravíssimo deixar de prestar
socorro à vítima. O novo código
de trânsito adotou o superlativo
absoluto de grave, "gravíssimo",
para distinguir uma coisa da outra, para aparentar severidade,
sabe-se lá.
Acidente com lesão corporal
culposa, provocado por embriaguez ao volante, por exemplo, é
considerado crime: o motorista
seria multado, perderia o direito
de dirigir, somaria sete pontos na
carteira de habilitação e seria preso. Tudo teoricamente gravíssimo. O novo código de trânsito seria bom: tem leis rígidas, multas
altas, tudo adequado a um povo
indisciplinado e meio analfabeto.
Mas o cumprimento severíssimo
do código de trânsito, a aplicação
imparcial da lei, está em processo
acelerado de virar piada na boca
do povo. Exemplo: em outubro do
ano passado, um leitor enviou a
seguinte carta ao "Painel do Leitor", da Folha:
"Apostei e ganhei uma dúzia de
cervejas logo que fiquei sabendo
que o jogador Edmundo tinha sido condenado a quatro anos e
meio de prisão. Apostei que não
ficaria 24 horas preso. Pois ele ficou 17 horas detido e com toda
mordomia. Ganhei fácil. Para ganhar o prêmio me baseei no seguinte: aqui no Brasil cadeia foi
feita somente para pobre. Rico se
livra facilmente e, como Edmundo ganha milhões, nunca poderia
ficar preso."
Em dezembro de 95, Edmundo
se envolveu em um acidente de
carro no qual três pessoas morreram. Outras três ficaram feridas.
Ele foi acusado de triplo homicídio culposo. Continua solto, livre e
leve, pronto para outra.
Mas o caso clássico de desdém
ao código, e de impunidade declarada, foi o do filho do então ministro dos Transportes, Odacir
Klein, em 1996. Fabrício Klein dirigia em alta velocidade, em Brasília, quando atropelou e matou o
pedreiro Elias de Oliveira Júnior.
O rapaz, que tinha bebido antes
numa festa, fugiu sem prestar socorro à vítima. O ministro -para
espanto geral da nação-estava
no carro e nada fez.
Era para Fabrício Klein mofar
na cadeia se o país fosse decente,
de leis racionais, aplicadas com rigor. Gravíssimo: Fabrício Klein
deve estar feliz da vida. Foi condenado a pagar uma mixaria à família do morto e fim. O pai e o poder abafaram o código e livraram
a cara do rapaz.
E o ano 2000 já começa com um
novo caso para a bolsa de apostas:
muitos engradados de cerveja para apostar que o pagodeiro Alexandre Pires, que matou um motoqueiro na semana passada em
Uberlândia (MG), vai sair impune do crime. Supõe-se que Pires
estava bêbado, dirigia em alta velocidade e com muita arrogância
seu Cherokee.
É assim: pobre quando fica rico
pode ser pior do que rico que já
nasceu rico -consegue ser mais
arrogante ainda, porque lhe falta
a mão de cal de cultura, de bons
modos e de parcimônia.
Os advogados e os juízes de Pires, dos Klein e de Edmundo vão
dizer que é isso mesmo, que há
"brechas" na lei, que "supostamente" isso e que "supostamente"
aquilo propiciam a suspensão das
penas etc. etc.
Tudo hipocrisia. Se fosse o contrário, pedreiro e motoqueiro matando filho de ministro e cantor
de pagode, as brechas não se abririam nem na base do porrete.
E-mail mfelinto@uol.com.br
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