São Paulo, terça-feira, 15 de fevereiro de 2000


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Apostar cervejas contra o código de trânsito

MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas

Era para ser uma infração gravíssima matar uma pessoa em acidente de carro. Gravíssimo dirigir bêbado ou em alta velocidade. Gravíssimo deixar de prestar socorro à vítima. O novo código de trânsito adotou o superlativo absoluto de grave, "gravíssimo", para distinguir uma coisa da outra, para aparentar severidade, sabe-se lá.
Acidente com lesão corporal culposa, provocado por embriaguez ao volante, por exemplo, é considerado crime: o motorista seria multado, perderia o direito de dirigir, somaria sete pontos na carteira de habilitação e seria preso. Tudo teoricamente gravíssimo. O novo código de trânsito seria bom: tem leis rígidas, multas altas, tudo adequado a um povo indisciplinado e meio analfabeto.
Mas o cumprimento severíssimo do código de trânsito, a aplicação imparcial da lei, está em processo acelerado de virar piada na boca do povo. Exemplo: em outubro do ano passado, um leitor enviou a seguinte carta ao "Painel do Leitor", da Folha:
"Apostei e ganhei uma dúzia de cervejas logo que fiquei sabendo que o jogador Edmundo tinha sido condenado a quatro anos e meio de prisão. Apostei que não ficaria 24 horas preso. Pois ele ficou 17 horas detido e com toda mordomia. Ganhei fácil. Para ganhar o prêmio me baseei no seguinte: aqui no Brasil cadeia foi feita somente para pobre. Rico se livra facilmente e, como Edmundo ganha milhões, nunca poderia ficar preso."
Em dezembro de 95, Edmundo se envolveu em um acidente de carro no qual três pessoas morreram. Outras três ficaram feridas. Ele foi acusado de triplo homicídio culposo. Continua solto, livre e leve, pronto para outra.
Mas o caso clássico de desdém ao código, e de impunidade declarada, foi o do filho do então ministro dos Transportes, Odacir Klein, em 1996. Fabrício Klein dirigia em alta velocidade, em Brasília, quando atropelou e matou o pedreiro Elias de Oliveira Júnior. O rapaz, que tinha bebido antes numa festa, fugiu sem prestar socorro à vítima. O ministro -para espanto geral da nação-estava no carro e nada fez.
Era para Fabrício Klein mofar na cadeia se o país fosse decente, de leis racionais, aplicadas com rigor. Gravíssimo: Fabrício Klein deve estar feliz da vida. Foi condenado a pagar uma mixaria à família do morto e fim. O pai e o poder abafaram o código e livraram a cara do rapaz.
E o ano 2000 já começa com um novo caso para a bolsa de apostas: muitos engradados de cerveja para apostar que o pagodeiro Alexandre Pires, que matou um motoqueiro na semana passada em Uberlândia (MG), vai sair impune do crime. Supõe-se que Pires estava bêbado, dirigia em alta velocidade e com muita arrogância seu Cherokee.
É assim: pobre quando fica rico pode ser pior do que rico que já nasceu rico -consegue ser mais arrogante ainda, porque lhe falta a mão de cal de cultura, de bons modos e de parcimônia.
Os advogados e os juízes de Pires, dos Klein e de Edmundo vão dizer que é isso mesmo, que há "brechas" na lei, que "supostamente" isso e que "supostamente" aquilo propiciam a suspensão das penas etc. etc.
Tudo hipocrisia. Se fosse o contrário, pedreiro e motoqueiro matando filho de ministro e cantor de pagode, as brechas não se abririam nem na base do porrete.


E-mail mfelinto@uol.com.br



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