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INCÊNDIO
Chamas
engoliram o
glamour
MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Editor de Domingo
As chamas engoliram o mais
belo aeroporto
do Brasil, o mais
simpático, o
mais glamouroso, o mais carregado de significados, o mais visitado pelas asas do afeto e da recordação.
O Santos Dumont, que ardeu ao
longo da madrugada de anteontem, preservava em seus pilotis,
em seus painéis, em seus mármores, em suas xícaras e bules de café
as digitais de um Brasil que vai definitivamente ficando para trás.
O Brasil de Getúlio Vargas, que o
inaugurou e batizou, o Brasil da
Siderúrgica Nacional, da cultura
de Gustavo Capanema, Carlos
Drummond e Villa-Lobos. Também o Brasil simbolizado pelo
Rio, o país da bossa nova, do Electra, da miss, do amor, do sorriso e
da flor.
O que aconteceu na sexta-feira
não foi um mero acidente. Foi como se um acúmulo de pequenas
negligências, fruto da degradação
dos serviços públicos, da degeneração de um ciclo estatista e dos
problemas da antiga capital fosse
gestado nas sombras para um belo
dia atingir seu ápice em labaredas,
num espetáculo público destinado
a exemplificar a sentença de morte
que as novas elites proclamaram
contra a velha ordem.
O incêndio do Santos Dumont
não deixa de ter esse cruel simbolismo, metáfora ardente da tese de
Fernando Henrique Cardoso de
que aquele Brasil erguido em torno da figura de Vargas está fadado
a virar cinzas.
Mas não é só a memória política
que se esvanece com as chamas.
Desbotam-se também sabe-se lá
quantas histórias pessoais, quantas infâncias, quantos amores,
quantos pecados, encontros e desencontros que ali eram revividos
a cada pouso e decolagem.
Quantos olhos deixaram-se hipnotizar pelos painéis no hall de desembarque, alegorias do sonho
humano de voar, com aquelas figuras fascinantes, aqueles balões,
dirigíveis, aeromoças e pilotos? De
quantos brasileiros o incêndio
roubou um pequeno tesouro de
sentimentos e lembranças? Quantos choraram ao saber da notícia?
Aeroporto internacional, porta
de entrada, cartão-postal, o Santos
Dumont, com a mudança da capital, foi aos poucos tornando-se o
ponto carioca de ligação permanente com São Paulo. Que sensação agradável chegar ao Rio em
sua pista, de frente para o Pão de
Açúcar, o mar tão perto, o Aterro,
o porto, o centro ao alcance dos
olhos. Que transtorno, agora, descer na ilha do Governador. E que
desconforto voltar a frequentá-lo,
em instalações improvisadas, e
testemunhar a desolação do velho
prédio incendiado...
Diz Jorge Henrique Dumont, 71,
sobrinho do inventor, que o tio,
cheio de crendices, atribuiria a
destruição ao dia fatídico -sexta-feira, 13. É muito provável. Da
mesma forma que outros tantos,
sem perder o humor diante da tragédia, apostam que o culpado é o
próprio Pai da Aviação.
O supersticioso Santos Dumont
transformou-se para muitos em
sinônimo de má sorte. Há quem
não pronuncie seu nome (ou corra
para bater na madeira ao ouvi-lo)
e prefira chamar o aeroporto assim mesmo -"aeroporto".
O fato de que entre os escombros
tenha-se preservado intacto o painel que retrata Dumont é para os
supersticiosos prova inconteste de
que há algo mais entre o céu e a
terra do que os aviões de carreira.
Mas mesmo esses concordarão
que o desleixo com a segurança, a
ausência de água e o atraso na comunicação aos bombeiros foram
precioso auxílio terreno à catástrofe. Auxílio que todo o país gostaria de ver esclarecido, mas que
corre o risco de ficar incógnito no
emaranhado das "apurações".
Nada, porém, restituirá o espaço
simbólico perdido -nem mesmo
a já proclamada reconstrução.
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