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CRIANÇAS DO BRASIL
Menino que cruzou São Paulo dirigindo um Volvo 1996 passou seis dias na Febem, tendo a companhia de garoto que matou o pai
Justiça libera P., 12, que furtou ônibus
RICARDO KOTSCHO
DA REPORTAGEM LOCAL
A inacreditável aventura do menino de 12 anos, que entrou num
ônibus sem motorista na Cidade
Tiradentes, na zona leste, deu a
partida, saiu dirigindo em direção
ao centro e rodou por cerca de 80
quilômetros em São Paulo até ser
parado pela polícia, na noite de
quarta para quinta-feira passada,
teve um final feliz ontem à tarde.
Detido há seis dias na Febem,
P.C.R.S. saiu do Fórum das Varas
Especiais da Infância e da Juventude acompanhado da mãe, Silvia
Ribeiro da Silva, 28, faxineira desempregada, depois de responder
a um interrogatório que durou 40
minutos. Ficará em regime de liberdade assistida e terá que prestar serviços à comunidade.
Baixinho e atarracado, meio envergonhado e meio orgulhoso
com a traquinagem, mãos cruzadas às costas como qualquer interno da Febem, ele ainda parecia
assustado às 9h de ontem ao entrar na sala de Sonia Regina Cesário, diretora da Unidade de Internação Provisória 7.
Nunca tinha passado antes pela
Febem. Aos poucos, porém, foi ficando mais tranquilo e resolveu
contar à reportagem da Folha o
que o levou a sair pilotando naquela noite o ônibus 10.188 da
Viação Cidade Tiradentes, um
Volvo ano 1996.
Em busca do pai
A viagem de P.C.R.S., na verdade, começou bem antes, há sete
anos, quando "o pai largou da
mãe, saiu de casa e desapareceu".
Mais velho dos seis filhos de Silvia
e do cobrador de ônibus Sebastião Dias de Jesus, Brutus, como é
chamado pelos colegas de rua na
Vila Campanela, nunca se conformou com a separação dos pais.
"Fiquei triste", lembra o garoto.
E passou a procurar por Jesus
em todas as garagens de ônibus
da zona leste. "Nunca mais achei
ele", diz. Tanto zanzou pelas garagens que acabou fazendo amizade
com motoristas, cobradores e
mecânicos. Virou uma espécie de
mascote dos "bicos", como se tratam os empregados das empresas
de transporte coletivo.
Brutus não gostava de jogar bola e já não se satisfazia com o ônibus de madeira que sempre carregava debaixo do braço, desde pequeno. "Meu sonho sempre foi
pegar um ônibus e sair dirigindo...", diz, abrindo um sorriso
malandro e abaixando a cabeça.
De tanto insistir, acabou convencendo um certo Edésio, motorista da empresa Masterbus mais
conhecido por Sapo, a levá-lo nas
viagens do ônibus que faz a linha
Vila Carrão e o Terminal São Mateus. "Ele ficava dirigindo, e eu
olhando. Ele passava a marcha, e
eu olhando. Aprendi assim,
olhando ele". Tinha 9 anos.
Quando contou a novidade à
mãe, Silvia não acreditou. A essa
altura, ele só aparecia em casa de
vez em quando. Depois que a
Masterbus faliu, ele passou a frequentar a garagem da Viação São
Judas, e assim foi indo até chegar
à Viação Cidade Tiradentes. Dormia nos quartos dos socorristas e,
de tanto olhar, acabou aprendendo também o ofício de mecânico.
A longa viagem
Brutus chegou a ficar um ano e
meio sem ver a mãe, mas ela diz
que não se preocupava "porque
sabia onde e com quem ele estava". No ano passado, deixou a escola para se dedicar apenas à "carreira". Ao voltar para casa, há
quatro meses, tinha perdido a
matrícula na escola.
Sem compromissos, saiu de casa na quarta-feira passada e foi ver
os "colegas" da garagem. Dias antes, tinha ouvido um comentário
dos "bicos" de que seu pai estava
trabalhando numa empresa de
ônibus de São Bernardo do Campo, no ABC paulista. Domingo
passado, era Dia dos Pais. Ficou
com aquilo na cabeça.
Às 19h, o manobrista da Viação
Cidade Tiradentes encostou o
10.188 no ponto final da avenida
dos Metalúrgicos, próximo à garagem. O motorista e o cobrador
do turno da noite ainda não haviam se apresentado. Brutus viu o
"ônibus ali sozinho", e entrou.
Ninguém apareceu. Partiu. "A essa hora, entregam o ônibus com o
tanque cheio", sabia.
Primeiro, pensou em ir direto
para São Bernardo do Campo para procurar o pai, mas se lembrou
que, à noite, havia muito policiamento no trajeto. Achou melhor
sair no sentido de São Mateus, um
caminho que já conhecia bem, e
pegou a avenida Aricanduva. Depois, a Jacu-Pêssego até o centro
de Itaquera. E foi indo: avenida
dos Campanela, avenida Águia de
Haia, até a Radial Leste.
Ri quando lhe perguntam como
conseguia alcançar o pedal do
acelerador com seu diminuto tamanho. "Ué, é só puxar o banco
para a frente..." E para trocar as
marchas? "Não tinha problema.
Peguei um carro hidramático
com direção hidráulica, tudo fácil..." (carro é como os motoristas
se referem ao ônibus).
"Não bati nenhuma vez em ninguém e fui embora. Não sabia se
ia para São Bernardo ou ficava só
dando um rolê". Brutus seguiu
então até a estação do metrô Penha e subiu o viaduto em direção
à marginal Tietê. Ali, empolga-se:
"Cheguei a dar 120 [km/h"". Com
o trânsito livre naquela hora, no
começo da madrugada de quinta-feira, conta que levou quatro multas. "Eu vi o flash do radar piscar."
À altura do metrô Santana, deixou a marginal em direção ao terminal do parque D. Pedro, onde
também tem amigos. Como já estava tarde, achou melhor pegar o
trajeto de volta para Cidade Tiradentes e devolver o ônibus na garagem. Tudo corria bem, sem sustos. Mas, ao chegar bem perto da
estrada Santo Inácio, onde fica a
garagem, foi cercado por duas
motos da Polícia Militar. Aí levou
um susto, apavorou-se.
"Dei azar. Fui bater logo num
outro ônibus da empresa, que estava com um amigo meu, o Aleluia." Levado primeiro para o 54º
Distrito Policial, onde foi feito o
boletim de ocorrência, viu o dia
amanhecer no UAI (Unidade de
Atendimento Inicial), a porta de
entrada dos menores infratores.
De volta à escola
Se não sentiu medo no trânsito
paulistano dirigindo um ônibus,
na Febem a coragem acabou. Ao
ser transferido para a unidade do
Brás, ficou com um menor que tinha matado o pai a facadas, entre
outros. Não queria conversa com
ninguém. Só respondia a perguntas dos monitores. Na visita que
recebeu da mãe no domingo, implorou para sair dali. Os dois choraram, mas era preciso esperar a
decisão da Justiça.
A própria diretora da unidade,
Sonia Cesário, há seis anos na Febem, ao ouvir a história de
P.C.R.S. achou que não era caso
de internação. Iria sugerir apenas
uma advertência e a extinção do
processo. Sem ninguém perguntar, Brutus garantiu que não pretende repetir a aventura. "Já matei
a vontade."
Ao reencontrar a mãe ontem no
Fórum, ficou sabendo que ela
conseguiu matriculá-lo numa escola do bairro e hoje mesmo voltará às aulas. "O problema dele
nunca foi comigo. É um bom menino. O problema dele é que gosta
muito de ônibus", repetia Silvia
ao final da audiência, enquanto
aguardava a liberação do filho na
calçada do Fórum, na rua Piratininga, no Brás.
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