São Paulo, terça, 15 de dezembro de 1998

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Gente que leva dólares nossos para Nova York

MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas

Disseram que os federais (policiais federais) pegam todo mundo no aeroporto, que fazem blitz com violência, vasculham malas à cata de contrabandistas. Disseram que é preciso declarar tudo o que se traz (acima de US$ 500) em compras do estrangeiro. Que criaram um formulário especial para isso. Um terror.
Todo mundo arrancando as etiquetas das roupas compradas na Macy's, na Century 21, esses grandes magazines americanos, dando uma amarfanhada nos pares de tênis, escondendo relógios dentro de meias. Cena ridícula, revoltante, como se a derrama de dólares "brasileiros" do território nacional para fora fosse obra desses turistazinhos de quinta categoria. Todo mundo ali tinha levado pouco mais de mil dólares para visitar o Empire State Building, a Estátua da Liberdade, o World Trade Center e suas torres de 147 andares, essas bobagens que americano constrói para dizer que está "no topo do mundo".
É claro que havia ali, entre os turistas, toda uma família de deslumbrados de classe média mediana brasileira, carioca, com sotaque padrão da Rede Globo de televisão -toda uma família de sneekers (tênis), o pai, a mãe, o menino de uns 10 anos. Toda uma família de consumidores de bugigangas americanas, que acha o máximo viajar para Nova York, uma gente lamentável.
Ora, mas também havia uns que vinham de um passado miserável no Brasil inóspito. Tinham levado a infância comendo os caranguejos duros do mangue, as cascas, as patas, a bosta do bicho. Tinham visto do queijo-do-reino apenas a lata vazia, que servia de cuia para cegos esmolarem pelas feiras do sertão -quer dizer, gente que nunca tinha comido uma única fatia do queijo-do-reino, o queijo que os ricos comiam em sua infância.
Aí o sujeito tinha conseguido dar uma subidinha na vida, realizar algum estudo, guardar algum troco para umas férias em Nova York e vinha o governo, a Polícia Federal e a alfândega aporrinharem sua vida, sua viagem, como se fosse ele o ladrão do tesourozinho nacional. Droga de país.
Imagine que em Nova York as pessoas sentem um certo cuidado (para não dizer um carinho) do Estado (da sociedade organizada) para com elas. O cidadão está parado na plataforma do metrô, esperando o trem, quando soa de repente, consoladora, a voz do locutor: "Your security is important to us. Be ware of pickpockets. Do not carry your wallet in the rear pocket (sua segurança é importante para nós. Cuidado com os batedores de carteira. Não carregue a carteira no bolso de trás da calça)". Ora, cuidados de mãe!
Basta isso para o cidadão médio e normal (com exceção do batedor de carteira, é claro) se sentir cuidado, respeitado, para confiar que os impostos que paga revertem em algum benefício para si.
Droga de país esse Brasil. A diferença entre Nova York e São Paulo, por exemplo, é que aqui até você é tratado como um batedor de carteira (do tesouro, das "reservas" nacionais), um marginal sujeito à violência e à hipocrisia da autoridade corrupta, ladrona.


E-mailmfelinto@uol.com.br



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