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BARRACÃO DE ZINCO
Sem emprego formal, famílias não conseguem alugar casas ou optam pelo centro para ficar próximas do trabalho
Cortiço em SP tem aluguel de classe média
FERNANDA CALGARO
DA REDAÇÃO
"Quando chove é o caos. O
quintal alaga. Aí, só de canoa. A
água bate no joelho", diz dona
Nenê, ou Cícera Maria da Silva,
49, que paga R$ 320 para morar,
incluindo água e luz.
É quase o valor do aluguel de
um apartamento de um dormitório em edifícios de classe média de
bairros paulistanos como o Jardim São Paulo, na zona norte, ou
na Saúde, na zona sul, uma área
bem arborizada próxima ao parque do Estado.
Mas a realidade de dona Nenê é
outra: há três anos vive em um
quarto de 20 metros quadrados
de um cortiço com o marido, o filho, a nora e dois netos, além da
irmã da nora, que a visita.
É que morar em cortiços pode
custar de R$ 170 a R$ 340 por mês,
dependendo do tamanho do cômodo, na capital paulista.
O sacrifício de morar na desvalorizada região da Luz, no centro
de São Paulo, afirma ela, e não em
uma casa mais em conta, na periferia, se justifica, diz ela. "A gente
fica longe de tudo."
Esse descompasso se deve à presença do intermediário, que loca
o imóvel por um determinado valor e depois divide esse imóvel,
que em geral é uma casa, em vários cômodos e os subloca a famílias diferentes. Ele se aproveita de
pessoas que, geralmente por não
ter emprego formal, não conseguem pagar aluguel.
No fim do mês, o lucro do intermediário pode superar em até três
vezes o valor do aluguel.
"Muitas vezes, a pessoa não
consegue comprovar renda, que é
uma das exigências do mercado
formal de locação de imóveis, e
acaba alugando o quarto de um
cortiço, só que pagando o mesmo
valor", explica o pesquisador Luiz
Kohara, que estudou o assunto
para a sua dissertação de mestrado pela USP. "A carência habitacional favorece a exploração em
cima da miséria", afirma Kohara.
Outro aspecto que inviabiliza o
aluguel no mercado formal por
parte dos encortiçados é o condomínio, que acaba elevando o custo da moradia, segundo Celso de
Sampaio Amaral Neto, 45, da empresa de consultoria do mercado
imobiliário Amaral D'Ávila.
A razão que leva essas pessoas a
se sujeitar a viver em ambientes
insalubres e superlotados está,
principalmente, na localização do
imóvel, por causa do fácil acesso
ao trabalho, à rede de transporte
público e à infra-estrutura urbana, como escolas e hospitais.
Banheiro coletivo
Todo os dias dona Nenê atravessa os cerca de dez metros que
separam o seu quarto do quintal e
torce para que um dos dois banheiros não tenha sido ocupado
por nenhum dos outros 27 moradores do cortiço em que mora.
Vizinha de quarto de dona Nenê
no cortiço -que fica na rua Guilherme Maw, uma travessa da rua
São Caetano, famosa por concentrar lojas de vestidos de noiva-,
Isabel Cristina Santos Camilo, 39,
sofre com a água das chuvas que,
insiste em gotejar do forro e escorrer pelas paredes, deixando
um leve cheiro de mofo no quarto
de 22 m2 que divide com o marido
e três filhos adolescentes.
Há um ano e meio nesse endereço, Isabel conta que está melhor
do que no antigo cortiço onde vivia. "Lá também molhava, mas
aqui molha um pouco menos",
diz, com um sorriso resignado.
Sergipana de Estância, a 68 km
de Aracaju, Isabel complementa
com R$ 100 a renda de R$ 600 do
marido fazendo flores de tecido
para arranjos e buquês de noiva,
vendidos por ali mesmo, na rua
São Caetano.
Morar perto do trabalho também é o que motiva Genésio de
Castro Luciano, 46, a ficar na Luz.
"Minha esposa trabalha em
uma fábrica costurando sapatos
aqui ao lado", diz, apontando para a construção vizinha ao terreno
onde fica sua casa. É a de número
11, no fim do quintal da rua Djalma Dutra, 240. "Pago R$ 250 de
aluguel. Eu encontraria uma casa
na periferia por R$ 120 ou R$ 150,
mas, quando morava em Perus,
na periferia da zona norte, ela tinha que levantar às 4h para vir
trabalhar aqui."
Integrante da Comissão dos Representantes de Cortiços e Pensões do Perímetro Luz, a luta de
Luciano, em suas palavras, é por
moradia própria e decente. "Não
peço nada de graça. Só defendo
que todos tenham casa."
Rotina
Natural de Jataúba, cidade do
agreste pernambucano a 228 km
de Recife, dona Nenê tem de dividir com as outras famílias duas
pias e dois tanques, cobertos por
um parco conjunto de telhas
transparentes, ao lado dos escassos varais, sempre cheios.
Sem revestimento de azulejo ou
janelas, os dois banheiros, que ficam no quintal da casa, abrigam
ainda os chuveiros elétricos, fragilmente instalados acima do vaso sanitário. "Não há briga para
usar o banheiro. Todo mundo é
compreensivo", diz dona Nenê,
que precisou colocar um bloqueador de chamadas a cobrar em seu
telefone, que, assim como a sua
intimidade, também é compartilhado com os outros moradores.
"Às vezes a música alta rola solta", reclama a vizinha Isabel. Ela
conta ainda que acumula a roupa
para ser lavada por duas semanas.
"Se for lavar todo dia não tem varal suficiente", pondera.
Os incômodos que a afetam parecem não abalar seu filho. "Aqui
é bom porque tem colega para
brincar", diz Bruno, 10, que cursa
a 4ª série, mas não sabe ler. "Só
conheço as letras."
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