São Paulo, domingo, 17 de outubro de 2004

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CULTURA CONCRETA

Acervo do poeta, com mais de 30 mil volumes, será levado para a Casa das Rosas, na avenida Paulista

Livros de Haroldo de Campos ficam em SP

MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

A bibliocasa vai acabar. Bibliocasa era a forma como Haroldo de Campos (1929-2003) chamava o sobrado em que morava em Perdizes (zona oeste de São Paulo). O neologismo tinha uma razão simples: os livros tinham tomado a casa. A bibliocasa vai acabar porque os mais de 30 mil volumes da biblioteca do poeta, tradutor e ensaísta serão doados pela família à Secretaria Estadual de Cultura.
O acervo será conservado na Casa das Rosas, na avenida Paulista, que passa a ter um segundo nome: Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, de acordo com a secretária estadual de Cultura, Claudia Costin.
José Luiz Goldfarb, que coordena na secretaria o projeto "São Paulo - Um Espaço para Leitores", obteve o "OK" da família depois de quase um ano de negociações -as conversas começaram em novembro do ano passado. Para se ter uma idéia da importância do acervo, a Universidade Yale, uma das mais influentes dos Estados Unidos, manifestou interesse em comprar os livros. A família do poeta, porém, queria e fez com que a biblioteca permanecesse em São Paulo.
"O meu sonho é abrir o espaço em janeiro do próximo ano, mas não posso prometer", diz Costin. A Casa das Rosas está fechada desde abril do ano passado. A tentativa de uma parceria da secretaria com o Instituto Takano, da gráfica homônima, fracassou. No final, uma reforma de R$ 200 mil foi bancada pelo governo.
Segundo o acordo negociado entre a secretaria e a família do poeta, o acervo será para consulta. O plano da secretaria é transformar o local num espaço de pesquisa literária.
O material para pesquisa na biblioteca da Haroldo é único no mundo. Ele traduziu (ou transcriou, como gostava de dizer) obras do inglês, do francês, do espanhol, do alemão, do italiano, do russo, do hebraico, do chinês e do japonês. Ao ver a tradução de alguns cantos da "Divina Comédia", nos quais Haroldo trabalhara pouco antes de morrer, o escritor italiano Umberto Eco avaliou que ele era o "mais importante tradutor moderno de Dante".

Labirinto de Borges
A tradução de Dante é reveladora do método de trabalho de Haroldo e de sua biblioteca. Para verter a "Divina Comédia", ele trabalhava com as várias traduções para outras línguas nas mãos, segundo João Alexandre Barbosa, professor aposentado de literatura da USP.
"O que mais me impressionava na biblioteca era a edição crítica dos clássicos. Ele tinha as melhores edições de Dante", conta Barbosa. Tinha também os melhores dicionários de todas as línguas pelas quais transitava, segundo ele.
Trajano Vieira, professor de grego da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), credita a diversidade da biblioteca à "curiosidade intelectual ilimitada" de Haroldo. "Não consigo imaginar outra imagem que não seja a do labirinto de Borges para descrever a biblioteca. Ao caminhar por ela, você entra no labirinto da cultura universal", diz Vieira.
Ele conheceu de perto o jeito de Haroldo traduzir ao colaborar na tradução da "Ilíada", de Homero, feita pelo poeta. A obsessão por traduções míticas levou Haroldo e Vieira a comprarem num sebo na Austrália a versão para o espanhol da "Ilíada" feita pelo helenista espanhol José Gómez Hermosilla (1771-1837/38). A tradução de Hermosilla ganhou essa aura porque era a predileta do poeta Lautréamont, autor de "Cantos de Maldoror". Ele também gostava da tradução para o alemão da "Ilíada" feita por Johann Heinrich Voss (1751-1826) e da versão em inglês de Robert Browning (1812-1889) -ambos poetas.
Os interesses de Haroldo eram tão ciclópicos que sua biblioteca tem gramáticas de egípcio e de nahuatl, a língua falada pelos astecas. "Nos últimos anos ele traduziu hinos ritualísticos dos astecas", diz Vieira.
Carmen Arruda de Campos, viúva de Haroldo, conta que a biblioteca tem edições com dedicatórias de Umberto Eco, de Octavio Paz, de Cabrera Infante, de Jacques Derrida e de de Julio Cortázar (que transformou o amigo em personagem de "Um tal Lucas", de 1979). "Desde 1959 viajávamos para a Europa e para os Estados Unidos e tínhamos esses amigos nesses lugares", diz Carmen. Muitos dos livros têm anotações de Haroldo nas margens.
Nelson Ascher, poeta e colunista da Folha, diz que Haroldo tinha uma das melhores bibliotecas de poesia que já viu. Ela abrange desde primeiras edições autografadas de Octavio Paz e João Cabral de Melo Neto até pequenas revistas literárias de todas as partes do mundo. As edições autografadas, segundo Ascher, eram usadas no trabalho, não recebiam tratamento especial: "Haroldo era um antifetichista do livro, não prezava o livro como objeto raro/caro".


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