São Paulo, sábado, 18 de abril de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MEMÓRIA
Um pé na racionalidade, outro na experimentação

PAULO HERKENHOFF
especial para a Folha

Sempre me indaguei quem foi o artista icônico de São Paulo no pós-guerra. Waldemar Cordeiro ou Geraldo de Barros? Inútil indagação. Cada um, a seu modo, mudou o Brasil. Somos herdeiros de muitos Geraldos de Barros. Fotógrafo, pintor, desenhista industrial, designer gráfico, professor, industrial. Era um construtor com um pé na racionalidade e outro na experimentação. Sua poética nasce disso.
Neste século, num primeiro momento, São Paulo chegou a confundir modernismo e futurismo, definindo uma relação dinâmica entre arte e "progresso". Eram os anos da paulicéia desvairada.
No pós-guerra, a atitude retorna numa perspectiva mais complexa, envolvendo estética industrial, pensamento social, teoria estética. Nos anos 50, São Paulo já não pode mais parar. Havia a nostalgia da promessa utópica da Bauhaus, que se renova com a presença de Max Bill entre nós e que se reinventa com Cordeiro e Barros. Desde cedo compreenderam ser necessária a ruptura.
Para eles, o Brasil não teria simplesmente uma "alma construtiva", mas era potencialmente um campo de experimentação poética, racionalidade e inscrição social da arte. Colocavam juntos Mondrian e Gramsci, gestalt, ácidos do estúdio fotográfico e madeira compensada.
A obra de desenhista industrial de Geraldo de Barros resultou numa linha em que o interesse estético nascia da funcionalidade e da administração de custos de produção. Nesse sentido, é um dos pioneiros, como Zanini, na idéia de uma produção de massa de móveis modernos simples e funcionais. Estava mais à esquerda do sofisticado móvel de Tenreiro. Ou seja, instituiu a prática social de produção do design para consumo pragmático e estético em larga escala.
Radha Abramo disse que ele era um designer das coisas diretamente ligadas ao homem. Num certo momento, a própria organização da produção de seus móveis significou uma espécie de experimentação de uma utopia socialista.
A espessura ou a consistência da obra de Geraldo de Barros se fizeram mesmo nos momentos em que pareciam incoerentes.
Suas colagens dos anos 60, irmãs dos "Pop-cretos" de Waldemar Cordeiro, testemunham o esgotamento das linguagens geométricas frente à crise social e de comunicação daquele momento histórico, como analisaria seu amigo Mário Pedrosa, nosso crítico maior. Ou seja, sua obra continuava sendo pensada no embate cultural da sociedade. Foi sempre assim.
Nos anos 80, retorna com esplêndidas construções em fórmica (havia nelas a memória do rigor objetivo dos concretistas) que indicavam os limites da voga expressionista, tantas vezes inconsequente, do retorno à pintura. Sua nova produção apelava à razão e, como sempre, justamente se afirmava como uma possibilidade do moderno ali onde se declarava sua crise.
Como fotógrafo, Geraldo de Barros instituiu um novo olhar. A câmara não é a caixa mágica de surpresas, efeitos e armadilha de congelamento do real. Fotografia, para Geraldo de Barros, era construir um sistema de pensamento visual e não um espelho congelado do real. Sua fotografia não teve cânones técnicos nem estéticos. Experimentou. Sobrepôs negativos. Usou cartões de computador.
Seu desafio não era questionar que novas imagens poderia captar, mas como a fotografia poderia se inventar como potencial. Suas "Fotoformas", na história da cultura brasileira, demonstraram um nível de consciência da linguagem que há muito a fotografia não experimentava abaixo do Equador. Com José Oiticica Filho, Geraldo de Barros instalou a fotografia no campo da nossa cultura numa década que nos deu a poesia concreta, o concretismo e o neoconcretismo, a bossa nova, a arquitetura e o cinema novo.
A generosidade pessoal de Geraldo de Barros é uma imensidão que guardo aqui em silêncio, e que compartilha um mito grego, uma artista e uma poeta.


Paulo Herkenhoff é crítico de arte e curador da 24ª Bienal Internacional de São Paulo



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.