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MEMÓRIA
Um pé na racionalidade, outro na experimentação
PAULO HERKENHOFF
especial para a Folha
Sempre me indaguei quem foi o
artista icônico de São Paulo no
pós-guerra. Waldemar Cordeiro
ou Geraldo de Barros? Inútil indagação. Cada um, a seu modo, mudou o Brasil. Somos herdeiros de
muitos Geraldos de Barros. Fotógrafo, pintor, desenhista industrial, designer gráfico, professor,
industrial. Era um construtor com
um pé na racionalidade e outro na
experimentação. Sua poética nasce disso.
Neste século, num primeiro momento, São Paulo chegou a confundir modernismo e futurismo,
definindo uma relação dinâmica
entre arte e "progresso". Eram os
anos da paulicéia desvairada.
No pós-guerra, a atitude retorna
numa perspectiva mais complexa,
envolvendo estética industrial,
pensamento social, teoria estética.
Nos anos 50, São Paulo já não pode mais parar. Havia a nostalgia da
promessa utópica da Bauhaus,
que se renova com a presença de
Max Bill entre nós e que se reinventa com Cordeiro e Barros. Desde cedo compreenderam ser necessária a ruptura.
Para eles, o Brasil não teria simplesmente uma "alma construtiva", mas era potencialmente um
campo de experimentação poética, racionalidade e inscrição social
da arte. Colocavam juntos Mondrian e Gramsci, gestalt, ácidos do
estúdio fotográfico e madeira
compensada.
A obra de desenhista industrial
de Geraldo de Barros resultou numa linha em que o interesse estético nascia da funcionalidade e da
administração de custos de produção. Nesse sentido, é um dos
pioneiros, como Zanini, na idéia
de uma produção de massa de móveis modernos simples e funcionais. Estava mais à esquerda do
sofisticado móvel de Tenreiro. Ou
seja, instituiu a prática social de
produção do design para consumo pragmático e estético em larga
escala.
Radha Abramo disse que ele era
um designer das coisas diretamente ligadas ao homem. Num certo
momento, a própria organização
da produção de seus móveis significou uma espécie de experimentação de uma utopia socialista.
A espessura ou a consistência da
obra de Geraldo de Barros se fizeram mesmo nos momentos em
que pareciam incoerentes.
Suas colagens dos anos 60, irmãs
dos "Pop-cretos" de Waldemar
Cordeiro, testemunham o esgotamento das linguagens geométricas
frente à crise social e de comunicação daquele momento histórico,
como analisaria seu amigo Mário
Pedrosa, nosso crítico maior. Ou
seja, sua obra continuava sendo
pensada no embate cultural da sociedade. Foi sempre assim.
Nos anos 80, retorna com esplêndidas construções em fórmica
(havia nelas a memória do rigor
objetivo dos concretistas) que indicavam os limites da voga expressionista, tantas vezes inconsequente, do retorno à pintura. Sua
nova produção apelava à razão e,
como sempre, justamente se afirmava como uma possibilidade do
moderno ali onde se declarava sua
crise.
Como fotógrafo, Geraldo de
Barros instituiu um novo olhar. A
câmara não é a caixa mágica de
surpresas, efeitos e armadilha de
congelamento do real. Fotografia,
para Geraldo de Barros, era construir um sistema de pensamento
visual e não um espelho congelado
do real. Sua fotografia não teve cânones técnicos nem estéticos. Experimentou. Sobrepôs negativos.
Usou cartões de computador.
Seu desafio não era questionar
que novas imagens poderia captar, mas como a fotografia poderia
se inventar como potencial. Suas
"Fotoformas", na história da cultura brasileira, demonstraram um
nível de consciência da linguagem
que há muito a fotografia não experimentava abaixo do Equador.
Com José Oiticica Filho, Geraldo
de Barros instalou a fotografia no
campo da nossa cultura numa década que nos deu a poesia concreta, o concretismo e o neoconcretismo, a bossa nova, a arquitetura
e o cinema novo.
A generosidade pessoal de Geraldo de Barros é uma imensidão
que guardo aqui em silêncio, e que
compartilha um mito grego, uma
artista e uma poeta.
Paulo Herkenhoff é crítico de arte e curador da
24ª Bienal Internacional de São Paulo
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