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MORTE NA PISCINA
Estudantes da Medicina da USP relatam como foi o dia em que Edison Hsueh se afogou na piscina da atlética
Renata Freitas/Folha Imagem
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Estudantes de medicina, amigos e familiares, participam do enterro de Edison Tsung Chi Hsueh, no cemitério do Araçá.
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Cartas revelam roteiro
da morte de calouro
JOSIAS DE SOUZA
Secretário de Redação
"Ovos, farinha, sacos de lixo..."
A cena parecia banal. Oito alunos. Todos da turma 86 da Faculdade de Medicina da USP. Elaboravam uma lista de compras.
"Sabão em pó, esponjas, baldes..."
Era fevereiro de 1999. Os estudantes haviam sido incumbidos de
organizar o trote, como é conhecido o ritual de "batismo" dos calouros. Elaboravam a lista antes de recolher com os colegas o dinheiro
para a compra dos produtos.
"Tinta guache, violeta de genciana, tesoura, barbante..."
Alguém que os visse naquele instante, jamais poderia supor. Mas
começava a ser construído ali, na
elaboração daquela lista, o roteiro
de uma morte. A morte de Edison
Tsung-Chi Hsueh, 22.
Edison planejava formar-se médico pela universidade mais respeitada do país. Suas pretensões
terminaram no dia 22 de fevereiro,
no fundo de uma piscina.
Ele morreu afogado. Provavelmente durante a festa que marcou
o encerramento do trote, na Associação Acadêmica Oswaldo Cruz,
espécie de clube administrado pelos estudantes de medicina da
USP. Havia à volta de Edison algo
como 200 pares de olhos. Mas é como se ele tivesse passado pela festa
invisível.
Sabe-se que morreu porque seu
corpo foi encontrado, ainda submerso, na manhã de 23 de fevereiro. Mas, passados quase dois meses, as circunstâncias de sua morte
continuam envoltas em uma nuvem de mistério.
Na última sexta-feira, a Folha teve acesso a documentos que, se
não dissipam a névoa, oferecem
pistas. Muitas pistas. São 68 cartas
manuscritas por calouros que, como Edison, foram submetidos ao
trote.
Juntando fragmentos dos textos,
entregues a uma comissão de sindicância da USP e repassados à polícia, pode-se reconstituir parte
daquele fatídico 22 de fevereiro.
Os relatos dos calouros introduzem na cena do trote ingredientes
que não constavam da lista elaborada por representantes da turma
86: uísque, vodca, pinga e frascos
de lança-perfume.
Junte-se a tais ingredientes a euforia típica de uma festa com cerca
de 200 estudantes, à beira de uma
piscina com profundidade de até
cinco metros, longe da vista de pais
e professores.
Um dos alunos descreveu assim a
atmosfera que o envolvia: "(...)
acho que foi como no Carnaval,
quando pessoas bebem e às vezes
as festas acabam em tragédia".
Foi nesse cenário que os sonhos
de Edison submergiram. Seu nome
é mencionado em três das 68 cartas. Em uma delas está anotado: "A
última vez que vi o Edison foi no
momento em que todos estavam à
beira da piscina (...)"
Segundo relatos de seus familiares, Edison não sabia nadar. Por
que, então, foi parar no fundo de
uma piscina que não dá pé, como
se diz, nem nos seus pontos mais
rasos? É o que se perguntam todos.
Novamente, as cartas dos calouros oferecem pistas:
1) "Veteranos (...) obrigaram
uma caloura, que não sabia nadar,
a entrar na piscina. A caloura avisou que não sabia nadar. Mas mesmo assim teve de entrar na piscina,
coagida. Ela foi retirada da piscina
por outros veteranos."
2) "Alguns veteranos bateram
nas mãos ou no (ilegível) de calouros que descansavam na borda da
piscina com chinelos e com baquetas de bateria, obrigando-os a se
dirigirem para o meio."
3) "(...) Em certos momentos, (os
calouros) se apoiavam na borda da
piscina. Alguns veteranos pisavam
nas mãos dos calouros, intimidando-os a permanecer na água (...)"
4) "(...) Havia mais de cem pessoas na água (...)"
5) "O que deveria ter sido feito, e
não ocorreu, era um aviso sobre a
profundidade da piscina."
6) "Talvez tenha faltado um salva-vidas numa piscina tão profunda."
7) "Havia muitos alunos alcoolizados, uma piscina funda e ninguém responsável para vigiar."
8) "A junção de pessoas alcoolizadas, com aquela piscina do lado,
foi uma abertura para acidentes."
Deve-se a uma iniciativa de Maria do Patrocínio Warth, professora de clínica geral, a existência das
cartas com os relatos dos calouros.
Ela convenceu os alunos a pôr no
papel tudo o que haviam vivenciado.
Primeiro, fez-se um documento
conjunto, datilografado e aprovado por um grupo de 35 alunos. Depois, em reunião com 127 alunos
(há uma lista de presença), os calouros foram estimulados a escrever, de próprio punho, relatos individuais, anexados posteriormente ao documento coletivo.
Os testemunhos como que dividem o trote em três fases. Nas duas
primeiras -dias 8 e 9, durante a
matrícula, e na manhã do dia 22,
após a aula inaugural- foram organizados em grupos, amarrados
pelo pulso com barbante, banhados com tinta guache e violeta de
genciana, cobertos com farinha e
ovos. Muitos tiveram as roupas recortadas.
Houve quem elogiasse a recepção. "No geral, o trote foi leve, sem
abusos, sem violência e sem bebidas", anotam os alunos em um trecho do relato coletivo.
"Os dois dias foram inesquecíveis para mim. A alegria está na
minha memória, apesar da fatalidade ocorrida", diz um dos relatos
individuais. "Sinto-me obrigado a
agradecer pela boa e animada recepção, apesar de tão infeliz acidente", acrescenta outro. "O trote
não deve ser extinto, visto que serve como um rito de passagem tão
necessário ao
ser humano",
diz um terceiro
relato.
As principais
críticas constam dos relatos
relativos à festa
na Associação
Acadêmica Oswaldo Cruz, na
tarde de 22 de
fevereiro. Ali,
os calouros receberam um
banho de esguicho. E, próximo das 13h,
foram acomodados em uma
arquibancada
em frente à piscina.
Uma das cartas anota: "(...)
os alunos tomavam aguardente e/ou uísque. Depois,
eram obrigados a pular na piscina. Veteranos
também empurravam os calouros
na piscina".
Em outro texto, lê-se: "(...) alguns veteranos não vinculados à
comissão de trote faziam muita
pressão sobre os calouros, para
que bebessem aguardente e cerveja
(...)
Ou ainda: "Alguns veteranos estavam usando lança-perfumes e
carregando garrafas de pinga. Na
hora da piscina, não perguntavam
se os calouros sabiam nadar ou
não (...) Muitas vezes os calouros,
após insistência e com o intuito de
se integrar, acabavam aceitando
(...) consumir álcool, entrar na piscina (...) Vale lembrar que muitos
estavam de estômago vazio".
Entre as 14h30 e as 15h, começou
a chover. Os estudantes alojaram-se em um ginásio da associação,
que leva o apelido de Caveirinha. A
essa altura, a situação já havia fugido ao controle
da chamada
"comissão de
trote" dos veteranos, a quem
competia coibir abusos.
Há, entre os
papéis obtidos
pela Folha, um
documento assinado pelos
oito integrantes da comissão de trote.
Eles afirmam
que, após o banho de mangueira, os calouros foram
liberados para
participar de
churrasco organizado previamente. "A
partir desse
momento, não
estavam mais
sob as orientações da comissão."
"Presenciei colegas sendo arrastados no Caveirinha", anota uma
carta. "Veteranos e alunos estavam
alterados pelas bebidas", diz outra.
"Elementos, liderados por um tal
Ceará, do sexto ano, tentaram me
derrubar para que eu fosse arrastado de bunda pelo chão molhado do
ginásio. Ao resistir, fui ameaçado.
Não consigo entender como uma
pessoa com tais sentimentos de
maldade possa vir a ser um médico."
Em outro depoimento, um aluno
informou: "Dentro do Caveirinha,
à tarde, aproximadamente 16h, alguns calouros foram arrastados,
puxados pelo pé (...) Usavam a força física. Fui forçado a beber. Vi veteranos cheirarem lança-perfume".
Segundo o laudo de exame necroscópico divulgado na última semana, Edison deve ter morrido entre as 14h e as 16h do dia 22 de fevereiro. Trata-se de uma possibilidade. O laudo não é peremptório.
Se os legistas estiverem certos, o
corpo de Edison já se encontrava
no fundo da piscina no instante em
que os estudantes se refugiaram da
chuva no ginásio coberto.
Alguns calouros e veteranos voltaram a mergulhar na piscina. Mas
nenhum deles admite ter visto o
cadáver. A água, de acordo com os
relatos, fora turvada pela tinta guache que se soltou dos corpos dos
calouros.
Houve inclusive quem, de saída,
lançasse um olhar sobre as águas.
"Fui embora por volta das 17h. Dei
uma rápida olhada na piscina, na
tentativa de encontrar minha sapatilha, perdida. Não achei nada
de estranho", informou uma aluna.
Embora a família de Edison esteja convencida de que ele foi assassinado e a polícia investigue a sério
a hipótese de homicídio, a comissão de sindicância constituída na
USP acha que não há, por ora, elementos que permitam conclusões
definitivas.
Tem-se como certo na USP: 1)
Edison morreu afogado. O laudo
da necropsia não deixa dúvidas a
esse respeito; 2) Não há sinais de
agressão prévia à sua queda na piscina. O corpo apresenta escoriações e manchas. As primeiras, conforme explicações dos responsáveis pelo laudo à comissão, devem
ser decorrência do período em que
Edison se debateu debaixo d'água,
tentando salvar-se. Quanto às
manchas, não teriam sido produzidas na festa do dia 22, mas cerca
de três dias antes.
Tem-se como duvidoso: a hora
da morte de Edison. Embora mencione a possibilidade de que tenha
ocorrido entre as 14h e as 16h do
dia 22, o laudo não é categórico. As
cartas registram a presença de estudantes no local da festa até por
volta das 23h. O corpo de Edison
foi encontrado na manhã seguinte,
às 7h30.
Perguntas para as quais ainda
não se obteve resposta: 1) Como
Edison caiu na piscina? Há três hipóteses: pode ter caído; pode ter
pulado ou pode ter sido jogado.
A primeira hipótese é tida como
pouco provável. Os exames feitos
no corpo de Edison demonstraram
que estava sóbrio. A segunda alternativa também é improvável, já
que o estudante não sabia nadar.
Resta a última hipótese, o que caracterizaria um caso de homicídio,
ainda que praticado sem a intenção de dolo.
Além da investigação em torno
da morte de Edison, a sindicância
da Faculdade de Medicina espera
identificar alunos responsáveis
por trotes violentos. Há nos relatos
algumas indicações, reforçadas
por depoimentos já obtidos pela
comissão.
O fantasma de Edison sacode os
subterrâneos da Faculdade de Medicina da USP. O episódio deixou
marcas no cotidiano da escola. Pela primeira vez, os professores haviam preparado uma semana de
recepção aos alunos. Não haveria
aulas. Programaram-se atividades
culturais, palestras, visitas ao Hospital das Clínicas e um churrasco
em que professores cozinhariam
para os alunos.
O churrasco ocorreria às margens da mesma piscina em que
Edison se afogou. Foi cancelado.
De resto, a sequência de humilhações a que foram submetidos deixaram marcas em alguns calouros.
Algo que a universidade deseja
evitar no futuro. Estuda-se a possibilidade de baixar um código de
ética a ser seguido pelos alunos, estabelecendo punições para excessos como os relatados nas cartas
dos calouros.
Em uma das cartas, diz-se que, ao
esfregar esponjas na boca de calouros, veteranos esmeravam-se
no castigo: "Após escorrer lágrimas, ainda pediam que nos desculpássemos. Juro que ia pegar esse
veterano japonês baixinho, junto
com o alemão. Não vim aqui para
ser humilhada."
Outro relato: "Um veterano queria cortar a minha blusa. Eu não
queria de jeito nenhum. Cheguei a
implorar. Ele insistia em cortar a
minha blusa pelas costas. Tentava
cortar também o sutiã."
"Fui colocado no centro de uma
roda", informou outro aluno. "Começaram a dar tapas na minha cabeça. Não contentes, mexeram nas
minhas coisas, chegando a abrir a
minha carteira. Perdi a alegria que
estava dentro de mim por ter passado no vestibular. Estou ansioso
por justiça pelo que aconteceu
com o colega Edison".
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