São Paulo, Domingo, 18 de Abril de 1999
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MORTE NA PISCINA
Estudantes da Medicina da USP relatam como foi o dia em que Edison Hsueh se afogou na piscina da atlética
Renata Freitas/Folha Imagem
Estudantes de medicina, amigos e familiares, participam do enterro de Edison Tsung Chi Hsueh, no cemitério do Araçá.


Cartas revelam roteiro
da morte de calouro

JOSIAS DE SOUZA
Secretário de Redação

"Ovos, farinha, sacos de lixo..."
A cena parecia banal. Oito alunos. Todos da turma 86 da Faculdade de Medicina da USP. Elaboravam uma lista de compras.
"Sabão em pó, esponjas, baldes..."
Era fevereiro de 1999. Os estudantes haviam sido incumbidos de organizar o trote, como é conhecido o ritual de "batismo" dos calouros. Elaboravam a lista antes de recolher com os colegas o dinheiro para a compra dos produtos.
"Tinta guache, violeta de genciana, tesoura, barbante..."
Alguém que os visse naquele instante, jamais poderia supor. Mas começava a ser construído ali, na elaboração daquela lista, o roteiro de uma morte. A morte de Edison Tsung-Chi Hsueh, 22.
Edison planejava formar-se médico pela universidade mais respeitada do país. Suas pretensões terminaram no dia 22 de fevereiro, no fundo de uma piscina.
Ele morreu afogado. Provavelmente durante a festa que marcou o encerramento do trote, na Associação Acadêmica Oswaldo Cruz, espécie de clube administrado pelos estudantes de medicina da USP. Havia à volta de Edison algo como 200 pares de olhos. Mas é como se ele tivesse passado pela festa invisível.
Sabe-se que morreu porque seu corpo foi encontrado, ainda submerso, na manhã de 23 de fevereiro. Mas, passados quase dois meses, as circunstâncias de sua morte continuam envoltas em uma nuvem de mistério.
Na última sexta-feira, a Folha teve acesso a documentos que, se não dissipam a névoa, oferecem pistas. Muitas pistas. São 68 cartas manuscritas por calouros que, como Edison, foram submetidos ao trote.
Juntando fragmentos dos textos, entregues a uma comissão de sindicância da USP e repassados à polícia, pode-se reconstituir parte daquele fatídico 22 de fevereiro.

Os relatos dos calouros introduzem na cena do trote ingredientes que não constavam da lista elaborada por representantes da turma 86: uísque, vodca, pinga e frascos de lança-perfume.
Junte-se a tais ingredientes a euforia típica de uma festa com cerca de 200 estudantes, à beira de uma piscina com profundidade de até cinco metros, longe da vista de pais e professores.
Um dos alunos descreveu assim a atmosfera que o envolvia: "(...) acho que foi como no Carnaval, quando pessoas bebem e às vezes as festas acabam em tragédia".
Foi nesse cenário que os sonhos de Edison submergiram. Seu nome é mencionado em três das 68 cartas. Em uma delas está anotado: "A última vez que vi o Edison foi no momento em que todos estavam à beira da piscina (...)"
Segundo relatos de seus familiares, Edison não sabia nadar. Por que, então, foi parar no fundo de uma piscina que não dá pé, como se diz, nem nos seus pontos mais rasos? É o que se perguntam todos.
Novamente, as cartas dos calouros oferecem pistas:
1) "Veteranos (...) obrigaram uma caloura, que não sabia nadar, a entrar na piscina. A caloura avisou que não sabia nadar. Mas mesmo assim teve de entrar na piscina, coagida. Ela foi retirada da piscina por outros veteranos."
2) "Alguns veteranos bateram nas mãos ou no (ilegível) de calouros que descansavam na borda da piscina com chinelos e com baquetas de bateria, obrigando-os a se dirigirem para o meio."
3) "(...) Em certos momentos, (os calouros) se apoiavam na borda da piscina. Alguns veteranos pisavam nas mãos dos calouros, intimidando-os a permanecer na água (...)"
4) "(...) Havia mais de cem pessoas na água (...)"
5) "O que deveria ter sido feito, e não ocorreu, era um aviso sobre a profundidade da piscina."
6) "Talvez tenha faltado um salva-vidas numa piscina tão profunda."
7) "Havia muitos alunos alcoolizados, uma piscina funda e ninguém responsável para vigiar."
8) "A junção de pessoas alcoolizadas, com aquela piscina do lado, foi uma abertura para acidentes."

Deve-se a uma iniciativa de Maria do Patrocínio Warth, professora de clínica geral, a existência das cartas com os relatos dos calouros. Ela convenceu os alunos a pôr no papel tudo o que haviam vivenciado.
Primeiro, fez-se um documento conjunto, datilografado e aprovado por um grupo de 35 alunos. Depois, em reunião com 127 alunos (há uma lista de presença), os calouros foram estimulados a escrever, de próprio punho, relatos individuais, anexados posteriormente ao documento coletivo.
Os testemunhos como que dividem o trote em três fases. Nas duas primeiras -dias 8 e 9, durante a matrícula, e na manhã do dia 22, após a aula inaugural- foram organizados em grupos, amarrados pelo pulso com barbante, banhados com tinta guache e violeta de genciana, cobertos com farinha e ovos. Muitos tiveram as roupas recortadas.
Houve quem elogiasse a recepção. "No geral, o trote foi leve, sem abusos, sem violência e sem bebidas", anotam os alunos em um trecho do relato coletivo.
"Os dois dias foram inesquecíveis para mim. A alegria está na minha memória, apesar da fatalidade ocorrida", diz um dos relatos individuais. "Sinto-me obrigado a agradecer pela boa e animada recepção, apesar de tão infeliz acidente", acrescenta outro. "O trote não deve ser extinto, visto que serve como um rito de passagem tão necessário ao ser humano", diz um terceiro relato.
As principais críticas constam dos relatos relativos à festa na Associação Acadêmica Oswaldo Cruz, na tarde de 22 de fevereiro. Ali, os calouros receberam um banho de esguicho. E, próximo das 13h, foram acomodados em uma arquibancada em frente à piscina.
Uma das cartas anota: "(...) os alunos tomavam aguardente e/ou uísque. Depois, eram obrigados a pular na piscina. Veteranos também empurravam os calouros na piscina".
Em outro texto, lê-se: "(...) alguns veteranos não vinculados à comissão de trote faziam muita pressão sobre os calouros, para que bebessem aguardente e cerveja (...)
Ou ainda: "Alguns veteranos estavam usando lança-perfumes e carregando garrafas de pinga. Na hora da piscina, não perguntavam se os calouros sabiam nadar ou não (...) Muitas vezes os calouros, após insistência e com o intuito de se integrar, acabavam aceitando (...) consumir álcool, entrar na piscina (...) Vale lembrar que muitos estavam de estômago vazio".
Entre as 14h30 e as 15h, começou a chover. Os estudantes alojaram-se em um ginásio da associação, que leva o apelido de Caveirinha. A essa altura, a situação já havia fugido ao controle da chamada "comissão de trote" dos veteranos, a quem competia coibir abusos.
Há, entre os papéis obtidos pela Folha, um documento assinado pelos oito integrantes da comissão de trote. Eles afirmam que, após o banho de mangueira, os calouros foram liberados para participar de churrasco organizado previamente. "A partir desse momento, não estavam mais sob as orientações da comissão."
"Presenciei colegas sendo arrastados no Caveirinha", anota uma carta. "Veteranos e alunos estavam alterados pelas bebidas", diz outra. "Elementos, liderados por um tal Ceará, do sexto ano, tentaram me derrubar para que eu fosse arrastado de bunda pelo chão molhado do ginásio. Ao resistir, fui ameaçado. Não consigo entender como uma pessoa com tais sentimentos de maldade possa vir a ser um médico."
Em outro depoimento, um aluno informou: "Dentro do Caveirinha, à tarde, aproximadamente 16h, alguns calouros foram arrastados, puxados pelo pé (...) Usavam a força física. Fui forçado a beber. Vi veteranos cheirarem lança-perfume".

Segundo o laudo de exame necroscópico divulgado na última semana, Edison deve ter morrido entre as 14h e as 16h do dia 22 de fevereiro. Trata-se de uma possibilidade. O laudo não é peremptório.
Se os legistas estiverem certos, o corpo de Edison já se encontrava no fundo da piscina no instante em que os estudantes se refugiaram da chuva no ginásio coberto.
Alguns calouros e veteranos voltaram a mergulhar na piscina. Mas nenhum deles admite ter visto o cadáver. A água, de acordo com os relatos, fora turvada pela tinta guache que se soltou dos corpos dos calouros.
Houve inclusive quem, de saída, lançasse um olhar sobre as águas. "Fui embora por volta das 17h. Dei uma rápida olhada na piscina, na tentativa de encontrar minha sapatilha, perdida. Não achei nada de estranho", informou uma aluna.
Embora a família de Edison esteja convencida de que ele foi assassinado e a polícia investigue a sério a hipótese de homicídio, a comissão de sindicância constituída na USP acha que não há, por ora, elementos que permitam conclusões definitivas.
Tem-se como certo na USP: 1) Edison morreu afogado. O laudo da necropsia não deixa dúvidas a esse respeito; 2) Não há sinais de agressão prévia à sua queda na piscina. O corpo apresenta escoriações e manchas. As primeiras, conforme explicações dos responsáveis pelo laudo à comissão, devem ser decorrência do período em que Edison se debateu debaixo d'água, tentando salvar-se. Quanto às manchas, não teriam sido produzidas na festa do dia 22, mas cerca de três dias antes.
Tem-se como duvidoso: a hora da morte de Edison. Embora mencione a possibilidade de que tenha ocorrido entre as 14h e as 16h do dia 22, o laudo não é categórico. As cartas registram a presença de estudantes no local da festa até por volta das 23h. O corpo de Edison foi encontrado na manhã seguinte, às 7h30.
Perguntas para as quais ainda não se obteve resposta: 1) Como Edison caiu na piscina? Há três hipóteses: pode ter caído; pode ter pulado ou pode ter sido jogado.
A primeira hipótese é tida como pouco provável. Os exames feitos no corpo de Edison demonstraram que estava sóbrio. A segunda alternativa também é improvável, já que o estudante não sabia nadar. Resta a última hipótese, o que caracterizaria um caso de homicídio, ainda que praticado sem a intenção de dolo.
Além da investigação em torno da morte de Edison, a sindicância da Faculdade de Medicina espera identificar alunos responsáveis por trotes violentos. Há nos relatos algumas indicações, reforçadas por depoimentos já obtidos pela comissão.











O fantasma de Edison sacode os subterrâneos da Faculdade de Medicina da USP. O episódio deixou marcas no cotidiano da escola. Pela primeira vez, os professores haviam preparado uma semana de recepção aos alunos. Não haveria aulas. Programaram-se atividades culturais, palestras, visitas ao Hospital das Clínicas e um churrasco em que professores cozinhariam para os alunos.
O churrasco ocorreria às margens da mesma piscina em que Edison se afogou. Foi cancelado. De resto, a sequência de humilhações a que foram submetidos deixaram marcas em alguns calouros.
Algo que a universidade deseja evitar no futuro. Estuda-se a possibilidade de baixar um código de ética a ser seguido pelos alunos, estabelecendo punições para excessos como os relatados nas cartas dos calouros.
Em uma das cartas, diz-se que, ao esfregar esponjas na boca de calouros, veteranos esmeravam-se no castigo: "Após escorrer lágrimas, ainda pediam que nos desculpássemos. Juro que ia pegar esse veterano japonês baixinho, junto com o alemão. Não vim aqui para ser humilhada."
Outro relato: "Um veterano queria cortar a minha blusa. Eu não queria de jeito nenhum. Cheguei a implorar. Ele insistia em cortar a minha blusa pelas costas. Tentava cortar também o sutiã."
"Fui colocado no centro de uma roda", informou outro aluno. "Começaram a dar tapas na minha cabeça. Não contentes, mexeram nas minhas coisas, chegando a abrir a minha carteira. Perdi a alegria que estava dentro de mim por ter passado no vestibular. Estou ansioso por justiça pelo que aconteceu com o colega Edison".


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