São Paulo, segunda, 18 de agosto de 1997.



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ENTREVISTA
Neurologista, que está no Brasil, afirma que o organismo se estrutura de acordo com suas necessidades
Para Sacks, doença é um conceito falho

ALEXANDRA OZORIO DE ALMEIDA
da Reportagem Local

O neurologista inglês Oliver Sacks defende que não existe uma divisão categórica entre doentes e saudáveis. Para ele, o próprio conceito de doença é discutível -pois muitas vezes o organismo arranja outros meios para executar suas funções-, e os tratamentos devem ser considerados caso a caso.
Sacks exemplifica seu argumento citando o caso de Virgil (do livro "Um Antropólogo em Marte"), que era cego, foi curado, e se defrontou com novos problemas.
Sacks, que vive há mais de 30 anos em Nova York, está no Brasil para o lançamento de seu último livro (leia texto). A seguir, trechos da entrevista, concedida ontem.

Folha - Como o sr. conceitua doença, em contraponto a saúde?
Oliver Sacks -
É muito complexo defini-los, pois há uma variação muito grande entre os dois conceitos. Acredito que os conceitos de saúde e de doença devem ser redefinidos em termos da capacidade do organismo de criar uma nova organização, adequada às suas necessidades.
Estar doente geralmente significa que uma parte do corpo não está funcionando, está danificado. E ser saudável não é um conceito único e imutável, pois a doença se incorpora na vida da pessoa.
Folha - Por exemplo?
Sacks -
Descobri que as pessoas surdas não se consideram deficientes. Afirmam que o som não tem importância e que elas têm uma percepção visual do mundo.
Há também casos como o de Virgil, que era praticamente cego desde muito novo, devido à catarata.
Aos 50 anos, descobriram que uma operação poderia restaurar a visão dele. Mas foi uma experiência atordoante, porque ele não sabia ver. O cérebro vai aprendendo a classificar e reconhecer o mundo. Você tem de aprender a ver.
Para reencontrar a paz, ele fechava os olhos e voltava para o mundo que conhecia. Acho que, nesse caso, os efeitos da mudança deveriam ter sido mais discutidos.
Comigo também é assim. Tenho insônia crônica, e considero isso uma doença na minha vida. Por outro lado, penso muito à noite e sou bastante ativo. Talvez, se fosse curado, perderia outras coisas. Você tem sempre de pesar prós e contras quando trata das pessoas.
Folha - Quanto já se conhece sobre a neurologia?
Sacks -
Os conhecimentos neurológicos têm evoluído muito e já temos técnicas bastante refinadas. Sabemos muitas coisas sobre a parte analítica do cérebro. Foram descobertos mais de 40 sistemas diferentes que cuidam de coisas como cores ou movimento.
Mas ainda sabemos muito pouco sobre como o cérebro sintetiza as informações. E a parte sintética é muito importante, porque é o que nos dá as sensações, o sentimento, nos dá coerência, consciência, nos faz sentir humanos.
Folha - E quão seguro é tratar as pessoas e ministrar remédios?
Sacks -
Na verdade, ainda temos poucos remédios para tratar de distúrbios neurológicos. Os que existem não têm alvo definido, servem para uma vasta gama de doenças. Ainda é pouco grosseiro.
Com o tempo vamos nos especializar mais, mas isso trará uma nova série de discussões médicas e éticas sobre as doenças e os tratamentos e remédios. Tudo que fazemos, como neurocirurgias ou medicação, tem um custo, e isso deve ser levado em conta.
Folha - Você trabalha em hospitais e também participa da vida de seus pacientes, saindo com eles e conhecendo suas casas, por exemplo. Onde se aprende mais, no laboratório ou no convívio?
Sacks -
Ambos são igualmente importantes. O laboratório para mim é o que as ilhas Galápagos foram para Darwin. Os hospitais de pacientes crônicos são meu laboratório, mas para sentir a vida das pessoas, tem de ser fora.
Folha - Como o sr. vê os médicos de hoje, que muitas vezes se preocupam mais com a doença em si do que com os pacientes?
Sacks -
Acho que é muito importante estudar a doença em si, para entendê-la. Mas também é importante que os médicos saibam que por trás de uma doença há um paciente.
Nos EUA, muitos pacientes reclamam que os médicos não dão muita atenção a eles -o que acho que é tão importante quanto o tratamento em si. O meu trabalho é justamente sobre isso: tentar aliar conhecimento médico a uma preocupação com a pessoa.
Folha - O sr. já tratou algum paciente brasileiro?
Sacks -
Acho que não. Teria sérias dificuldades, pois sou péssimo em línguas e é preciso conversar com os pacientes.
Mas seria muito interessante ver como é um autista brasileiro, por exemplo, pois as culturas influenciam no tratamento das pessoas. Aqui, por exemplo, não vi acessos especiais para deficientes.
Folha - Como é o seu dia-a-dia com seus pacientes?
Sacks -
Passo metade da semana nos hospitais em que trabalho, vendo meus pacientes. Alguns estão comigo há mais de 20 anos. Fora isso, vejo outras pessoas.
Não escolho pacientes, tento atender todos que me procuram. O tempo que passo com eles depende da gravidade do problema.
Em geral passo as manhãs no hospital com os pacientes e depois saio para andar no jardim botânico, que é ali do lado. Quando volto, já preparei mentalmente minhas anotações sobre os pacientes.
Essas anotações não diferem muito das narrativas dos meus livros. Quando me perguntam se sou médico ou escritor, respondo que os dois andam juntos.
Folha - Existe um "método Sacks de tratamento"?
Sacks -
De vez em quando algum estudante de medicina me procura para estudar a "técnica Sacks", mas isso não existe.
O que faço é simplesmente ouvir e prestar muita atenção no que meus pacientes fazem e falam, e tentar aliar isso com os conhecimentos médicos que possuo.



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