São Paulo, Terça-feira, 19 de Outubro de 1999
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Ídolo posto, ídolo assaltado: R$ 2,50 na conta


MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas


Deu no rádio que Pelé quase foi assaltado no último fim-de-semana em São Paulo. Parado em sua Mercedes num semáforo da cidade, o ex-jogador foi abordado por um ladrão que lhe pediu o relógio e todo o dinheiro que tivesse no bolso. Pelé, então, tirou o boné que usava e foi reconhecido. O assaltante pediu desculpas e foi embora sem levar nada.
Mesma sorte não tiveram outros famosos, vítimas de assaltos: o humorista Renato Aragão, a "mídia-woman" Adriane Galisteu e outros atletas do futebol. Mas teve Pelé sorte, ou será ele o último exemplo de ídolo à antiga?
A gente de TV e os jogadores de futebol de hoje não são exemplos inspiradores de respeito ou reverência. Pelo contrário: basta citar o caso do jogador Edmundo, ou de Paulo Nunes (do Palmeiras, também assaltado recentemente), ou do filho do próprio Pelé.
O primeiro tem seu nome ligado à violência, à arrogância do dinheiro, ao crime e à marginalidade. O segundo, acusado de racismo, apareceu mais de uma vez em jogos pela TV chutando adversários, comportamento típico desse esporte machista e vulgar. O outro, filhinho de papai, é acusado de participar de rachas e matar gente. Péssimos exemplos de conduta para os meninos que os assistem e imitam.
Quando não é isso, eles não representam senão o poderio do dinheiro, são milionários, exemplares ambulantes de ostentação, acúmulo e concentração de renda. O mesmo acontece com a gente de TV: são ídolos vazios, "artistas" sem obra, criações do mundo frívolo da publicidade. Expõem e ostentam sua vida de luxo e futilidade nas revistas de fofocas, nas ilhas de imbecilidade que fundam revistas e programas de TV.
Muito bem, a crise de valores instalada nesta sociedade brasileira de fim de século se reflete com precisão em episódios de violência como esses. O bandido, indiferente à conduta moral dos homens, também já não tem ídolos. O último ídolo parece ter sido mesmo Pelé, o "menino negro e pobre de Três Corações" que virou o "rei do futebol".
É evidente que vivemos aqui uma guerra civil -a queda de símbolos, aliás, é fator poderoso na conformação das revoluções, diz o historiador. Nunca se falou tanto em blindar carros. Antigamente, apenas tanques de guerra eram blindados. Hoje se fala com espantosa naturalidade em consórcios para blindar carros, em seguros para blindar carros.
Experimentamos uma guerra meio muda ainda, é verdade. Sem teorias declaradas, sem ideologias confessadas. Quase sem ruído, mas guerra.
Agora me vem o governo de São Paulo criar uma taxa de R$ 2,50 para financiar a segurança. Quer descontar na conta telefônica de Pelé e de Adriane Galisteu a mesma quantia que descontará da conta telefônica do Zé Mané que conta os centavos para pegar dois ônibus, sair do Jardim Ângela ou de Sapopemba, na periferia, e chegar ao trabalho -pelo qual ganha dois salários mínimos. Detalhe: o Zé Mané esperou 20 anos para poder ter acesso à linha telefônica que tem hoje.
Ora, o governo de São Paulo parece disposto a manter ainda mais injusta e desigual essa sociedade em que já não se pode ter ídolos. Os ídolos de hoje estão postos, são ídolos de pés de barro, valem quanto pesam: aparentemente indestrutíveis, facilmente derrotáveis.

E-mail: mfelinto@uol.com.br


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