São Paulo, quinta, 20 de fevereiro de 1997.

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BOLETIM DE OCORRÊNCIA
Portinari e o destino

MOACYR SCLIAR

Como de costume, ele chegou tarde do trabalho. Mas, em vez de sentar na frente da televisão, como também era seu costume, chamou a mulher:
- Sente aí. Tenho uma coisa para lhe contar. Uma coisa muito importante.
Surpresa -o marido não era de tais solenidades- ela obedeceu. Durante alguns minutos, ele ficou andando de um lado para outro; aparentemente, não lhe era fácil falar. Finalmente, olhou-a e começou:
- Você sabe, mulher, que eu dificilmente posso me considerar um vencedor. Nasci pobre e pobre fiquei. Nunca saí desta cidade. Nunca passei de um empregado de escritório. Bom empregado, mas empregado. Salário baixo, essas coisas. Você sabe.
Claro que ela sabia: criar os filhos, manter a casa... Um sacrifício que já durava 30 anos. Ele continuou:
- Mas esses dias, mulher, descobri que existe, sim, uma coisa muito importante na minha vida. Uma coisa que nunca lhe contei, mas que vou lhe contar agora.
Fez uma pausa e prosseguiu:
- Você sabe que eu saio tarde do escritório. Mas tem uma coisa que você nunca soube. Todas as noites eu passava no Clube, na esquina da Halfeld com a Rio Branco. Não entrava - quem sou eu? -mas fazia xixi na parede. Aliás, não só eu: vários. Há anos nós nos encontrávamos naquele lugar. Já nos conhecíamos: éramos a turma do xixi. Esses dias eu descobri que o painel naquela parede é -sabe de quem? do Portinari, mulher. O grande pintor brasileiro. Eu fazia xixi numa obra de arte, mulher. Eu, que nunca tive importância, fazia xixi numa obra de arte.
Nova interrupção, e agora sua angústia era evidente.
- Ontem, mulher, eu fui lá de novo. Fui fazer xixi no painel. E não consegui. Simplesmente não consegui. Fiquei tão preocupado que hoje procurei o médico. Ele me disse que é a próstata. Mas eu acho que não é a próstata, mulher. Eu acho que é o destino. A única coisa que eu conseguia fazer, e que tinha alguma importância, já não está mais ao meu alcance. O que acha disso, mulher? Diga, o que você acha disso?
Ela pensou um pouco:
- Acho -disse por fim- que está na hora de você jantar. Venha. Ele obedeceu. Era uma mulher muito sábia, a sua.

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