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BOLETIM DE OCORRÊNCIA
Portinari e o destino
MOACYR SCLIAR
Como de costume, ele chegou
tarde do trabalho. Mas, em vez de
sentar na frente da televisão, como também era seu costume,
chamou a mulher:
- Sente aí. Tenho uma coisa
para lhe contar. Uma coisa muito
importante.
Surpresa -o marido não era de
tais solenidades- ela obedeceu.
Durante alguns minutos, ele ficou andando de um lado para
outro; aparentemente, não lhe
era fácil falar. Finalmente,
olhou-a e começou:
- Você sabe, mulher, que eu
dificilmente posso me considerar
um vencedor. Nasci pobre e pobre
fiquei. Nunca saí desta cidade.
Nunca passei de um empregado
de escritório. Bom empregado,
mas empregado. Salário baixo,
essas coisas. Você sabe.
Claro que ela sabia: criar os filhos, manter a casa... Um sacrifício que já durava 30 anos. Ele
continuou:
- Mas esses dias, mulher, descobri que existe, sim, uma coisa
muito importante na minha vida. Uma coisa que nunca lhe
contei, mas que vou lhe contar
agora.
Fez uma pausa e prosseguiu:
- Você sabe que eu saio tarde
do escritório. Mas tem uma coisa
que você nunca soube. Todas as
noites eu passava no Clube, na
esquina da Halfeld com a Rio
Branco. Não entrava - quem
sou eu? -mas fazia xixi na parede. Aliás, não só eu: vários. Há
anos nós nos encontrávamos naquele lugar. Já nos conhecíamos:
éramos a turma do xixi. Esses
dias eu descobri que o painel naquela parede é -sabe de quem?
do Portinari, mulher. O grande
pintor brasileiro. Eu fazia xixi
numa obra de arte, mulher. Eu,
que nunca tive importância, fazia xixi numa obra de arte.
Nova interrupção, e agora sua
angústia era evidente.
- Ontem, mulher, eu fui lá de
novo. Fui fazer xixi no painel. E
não consegui. Simplesmente não
consegui. Fiquei tão preocupado
que hoje procurei o médico. Ele
me disse que é a próstata. Mas eu
acho que não é a próstata, mulher. Eu acho que é o destino. A
única coisa que eu conseguia fazer, e que tinha alguma importância, já não está mais ao meu
alcance. O que acha disso, mulher? Diga, o que você acha disso?
Ela pensou um pouco:
- Acho -disse por fim- que
está na hora de você jantar. Venha. Ele obedeceu. Era uma mulher muito sábia, a sua.
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