São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 2000


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GILBERTO DIMENSTEIN

Vidas invisíveis

Vítima da talidomida, Cláudia Marques Maximino, 37 anos, não tem pernas e parte dos braços - mas graças à Internet, ela se transformou em objeto de exploração sexual, acionando investigação do Ministério da Justiça, conduzida, agora, pela Polícia Federal. Representante das vítimas da talidomida no Brasil, Cláudia recebeu um e-mail, redigido em Paris, propondo encontros amorosos.
Intrigada com a correspondência, ela averiguou e descobriu o motivo da proposta: fora exposta, clandestinamente, numa página da Internet, localizada na Alemanha, com ramificações internacionais, de um grupo batizado de "devotees".
Numa aberração do tipo pedofilia, o prazer dos "devotees" está em manter relações sexuais com portadores de deficiência física; a Internet ajudou-os a ganhar escala planetária. No Brasil, o site foi batizado de "Amputadas On line". "É uma violência ver-se exposta desse jeito", afirma Cláudia que, ao analisar a página, constatou mais abusos, inclusive contra adolescentes brasileiras com deficiência física.


Por determinação do secretário de Direitos Humanos, José Gregori, a Polícia Federal persegue a rede, no Brasil, dos "devotees" - o problema, a rigor, não é a perversão, mas piratear fotos.
"É crime", afirma Tânia Maria de Almeida, responsável pela Corde (Coordenação Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência), do Ministério da Justiça.
Essas descobertas sobre exploração pela Internet engrossam os motivos para o Ministério da Justiça lançar campanha contra os mais variados casos de abuso sexual contra portadores de deficiência, disseminados no país.
Só na Bahia já existe um dossiê, montado pela Associação Bahiana, com o registro, ano passado, de 90 casos de abuso - muitos deles, de deficientes mentais.


Fui forçado a escolher entre mil palavras para perguntar a Cláudia, uma brava militante dos direitos humanos, reconhecida internacionalmente, se, afinal, alguém atraído por esse tipo de sexo cometeria, a rigor, uma delinquência.
Desconsidere-se, aqui, a clara ilegalidade de alguém usar, às escondidas, fotos alheias.
Segundo ela, esse submundo dos "devotees" é movido apenas por perversão. "E perversão é perversão", afirma.



Tanto para o bem como para o mal, o fato é que a Internet aproxima as pessoas, abrindo possibilidades jamais imaginadas - basta ver a rede de pessoas que procuram ajuda e acham soluções ou apoio para seus parentes doentes.
Na semana passada, desta vez com o timbre da prestigiosa Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, uma ampla pesquisa apontou aspectos malignos da Internet.
Os encantos da rede estariam provocando isolamento. Escravas da navegação digital, as pessoas ficariam horas e mais horas diante da tela, trancadas no quarto, sem ver os amigos e familiares.
Informo ao leitor minha predileção: conversar ao vivo com os amigos, olho no olho, rindo, gargalhando, se emocionando, é disparado, um dos melhores prazeres na vida.
Quem não descobriu o prazer do bate-papo não atingiu um grau mínimo civilizatório.
Daí a culpar a Internet pelo isolamento me parece terrorismo psicológico.
Nem vou citar a televisão, que gruda as crianças, na maior parte do tempo, em bobagens feitas quase sempre para vender bobagens. A programação adulta, tirando as exceções, em geral na TV por assinatura, é o desfile de imbecilidades.
A televisão virou obstáculo para a gostosa conversa das famílias na hora do jantar, costume do tempo dos meus avós.
Por acaso, alguém ficar trancado só lendo livros é tão menos desumano do que a prisão na tela?

O que provoca o isolamento não é a tecnologia - as máquinas apenas acentuam uma tendência nutrida dentro da sociedade.
O isolamento é fruto de uma visão individualista, cínica até, sem valores comunitários, na ética e ótica do "cada um por si e ninguém por todos".
Não se ensina a cooperar, mas apenas competir; o padrão do sucesso é aquele de quem briga para ser mais rico e mais famoso.
Mergulhados em seus problemas e agendas lotadas, pais não conversam com os filhos - e, depois, a culpa do isolamento é da tecnologia.
A sociedade vai ficando mais moderna, oferece mais oportunidades, e vamos, paradoxalmente, ficando com menos tempo. Ganhamos visibilidade virtual e invisibilidade real.


Usar bem a Internet é tirar proveito da tecnologia para ganhar tempo e ter mais espaço ao convívio humano.
Fora disso, é a tecnologia inteligente a serviço da burrice. Ou da perversão.




PS- Para compensar a perversão na Internet. A fotógrafa Letícia Valverdes passou os últimos dois anos andando pelas grandes cidades brasileiras, descobrindo e registrando a feminilidade e a beleza das meninas de rua - árdua tarefa sair da óbvia denúncia da tragédia à procura também do belo. A série se chama "Vidas Invisíveis".
A exposição ainda está sem data, mas uma amostra já pode ser vista, com exclusividade, no UOL, pelo endereço www.aprendiz.com.br/


E-mail: gdimen@uol.com.br

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