São Paulo, Sábado, 20 de Fevereiro de 1999
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LETRAS JURÍDICAS
Que é a verdade?


WALTER CENEVIVA
da Equipe de Articulistas

A pergunta clássica de Pilatos sobre o que é a verdade, encontrada no Evangelho de São João, retorna ao trabalhador do direito toda vez que lhe caiba distinguir claramente situações de fato, das quais receba versões diferentes e até contraditórias. A velha pergunta e as respostas que lhe podem ser dadas mesclam, nos mundos diversos da ética e do jurídico, armadilhas agravadas pela revolução tecnológica atual, da comunicação globalizada, subvertendo velhas instituições.
Tome-se o exemplo da acusação do economista Paul Krugman, de conduta ilícita ou, pelo menos, de grave falha ética, atribuída a Armínio Fraga, presidente do Banco Central do Brasil. Krugman disse -e a comunicação instantânea ampliou- que Fraga permitiu jogada do investidor internacional George Soros, ao qual servia, dando-lhe grande lucro.
Krugman voltou atrás, dizendo que não disse o que disse, mas o mal está feito, mostrando a reiterada impossibilidade da resposta definitiva para a questão de Pilatos, quando aplicada em concreto.
O operário jurídico tem pouco ou nenhum interesse em saber quais os padrões morais de Krugman, ou se ele tem autoridade para fazer insinuações sobre quem quer que seja. Imprudente já se sabe que é. Mas, se chegasse a hora de discutir a questão do dano causado e de sua responsabilização, seria apenas um cidadão maior e capaz, apto a responder pelos seus atos, por meio do devido processo legal. Independentemente da seriedade ou da falta da sociedade de Krugman, as falas do economista também propõem a pergunta: o que é a verdade na economia? Os conflitos das correntes teóricas são tão extensos que se pode até repetir a dúvida criada por Shakespeare, na primeira parte do Henrique 4º: "A verdade não é a verdade?"
O universo jurídico não é melhor. Nele, verdade e mentira não são antinômicas, ou seja, não são necessariamente opostas ou em contradição. Nesse universo, as zonas cinzentas sempre existem ou podem ser criadas, o que transforma a garantia constitucional do artigo 5º (vida, honra e privacidade são invioláveis) em meras possibilidades, mas não em obstáculos efetivos, contra a ofensa ou para assegurar punição de ofensor. Quando a versão, qualquer que seja a respeitabilidade da fonte, se sobrepõe ao fato, não há verdade que sobreviva.
O presidente do Banco Central tem meios para expor seu lado da questão, mas não basta. O desprestígio moderno da veracidade terminou impondo a crença em tudo o que seja mau ou negativo e a passagem das referências boas para o campo dos interesses ocultos ou da badalação.
A velha máxima jurídica de que os fatos falam por si mesmos (ou, em latim, "res ipsa loquitur") não vale mais, ante a impossibilidade de apartar claramente o fato de sua versão ou de suas versões. As soluções possíveis -nenhuma das quais perceptível a curto prazo-consistem em reconhecer a subsistência da verdade relativa. Na comunicação social, consistem em contrapor a divulgação de uma "verdade/ mentira" declarada por alguém à "mentira/ verdade" do atingido, em rigoroso equilíbrio temporal e de espaço, de modo a permitir que o dever de informar seja cumprido e, agora mais do que nunca, o direito de ser informado seja plenamente garantido. É uma forma de preservar a lei. Mais que isso: de garantir a democracia.


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