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COTIDIANO IMAGINÁRIO
A vida por baixo do pano
MOACYR SCLIAR
Separação "por baixo do pano":
Pitta está "milionário" segundo
"dois advogados" que propuseram a ele acordo de separação
conjugal "por baixo do pano", para que Nicéa recebesse valores
"elevados" do prefeito.
Brasil,16.mar.2000
Era muito boa a vida por baixo do pano. As pessoas que ali
viviam -poucas; aquele estava longe de ser um espaço democrático, mesmo porque povo significa aglomeração e para aglomerações não há lugar
por baixo do pano, inclusive e
principalmente por causa do
cheiro- conheciam perfeitamente as regras que deveriam
seguir. Por exemplo, jamais falavam em voz alta. Por baixo
do pano, a comunicação é feita
por cochichos, por conversas ao
pé do ouvido, por certos sinais
significativos: um piscar de
olhos pode ser muito eloquente, ao sugerir uma transação
no valor de alguns milhões.
Também se movem com muita
cautela. Cautela é uma recomendação básica para quem
decide viver por baixo do pano.
Qualquer movimentação deve
ser estudada muito bem, para
não ser percebida por aqueles
que estão do lado de fora e que
constantemente observam o
pano tentando detectar o que
por baixo dele acontece. Aliás,
e justamente por causa desses
observadores, o pano é feito de
tecido ordinário, desses que podem ser comprados em qualquer loja de subúrbio. Ninguém sabe que, por dentro, há
um forro de finíssimo brocado.
Esse é o pano verdadeiro. O outro é só o pano aparente, bom
para otário. Mais um segredo
que as pessoas que vivem em
baixo do pano conhecem e não
revelam.
É uma existência idílica, essa, por baixo do pano, um
exercício de cálida cumplicidade. Mas aí houve o que se sabe:
dois começaram a brigar. E os
gestos que fizeram foram tão
violentos que acabaram por
rasgar o pano. O que foi um desastre. Pelo rasgão, jornalistas
abelhudos podem espiar o que
se passa por baixo do pano e
contar o que viram. E uma vez
que as pessoas de fora sabem, o
desastre é irreversível. O rasgão
é alargado mais e mais. O resultado, para quem está por
baixo do pano, pode ser o pânico. Muitas pessoas reagem de
maneira histérica: eu não tenho nada a ver com isso, eu
não vivo aqui, eu só estava passando por esse lugar, entrei em
baixo do pano para me abrigar
da chuva, chove muito nesta
cidade. Mas é tarde: todo o
mundo quer agora levantar o
pano para saber o que há por
baixo dele.
O horror, enfim, o horror.
Tudo que se pode fazer é esperar que, depois de levantado,
caia novamente o pano e que a
vida volte a ser o que era. Mas
a vida por baixo do pano nunca mais será o que era.
O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no
jornal.
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