São Paulo, segunda-feira, 20 de março de 2000


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COTIDIANO IMAGINÁRIO
A vida por baixo do pano

MOACYR SCLIAR
 Separação "por baixo do pano": Pitta está "milionário" segundo "dois advogados" que propuseram a ele acordo de separação conjugal "por baixo do pano", para que Nicéa recebesse valores "elevados" do prefeito. Brasil,16.mar.2000


Era muito boa a vida por baixo do pano. As pessoas que ali viviam -poucas; aquele estava longe de ser um espaço democrático, mesmo porque povo significa aglomeração e para aglomerações não há lugar por baixo do pano, inclusive e principalmente por causa do cheiro- conheciam perfeitamente as regras que deveriam seguir. Por exemplo, jamais falavam em voz alta. Por baixo do pano, a comunicação é feita por cochichos, por conversas ao pé do ouvido, por certos sinais significativos: um piscar de olhos pode ser muito eloquente, ao sugerir uma transação no valor de alguns milhões. Também se movem com muita cautela. Cautela é uma recomendação básica para quem decide viver por baixo do pano. Qualquer movimentação deve ser estudada muito bem, para não ser percebida por aqueles que estão do lado de fora e que constantemente observam o pano tentando detectar o que por baixo dele acontece. Aliás, e justamente por causa desses observadores, o pano é feito de tecido ordinário, desses que podem ser comprados em qualquer loja de subúrbio. Ninguém sabe que, por dentro, há um forro de finíssimo brocado. Esse é o pano verdadeiro. O outro é só o pano aparente, bom para otário. Mais um segredo que as pessoas que vivem em baixo do pano conhecem e não revelam.
É uma existência idílica, essa, por baixo do pano, um exercício de cálida cumplicidade. Mas aí houve o que se sabe: dois começaram a brigar. E os gestos que fizeram foram tão violentos que acabaram por rasgar o pano. O que foi um desastre. Pelo rasgão, jornalistas abelhudos podem espiar o que se passa por baixo do pano e contar o que viram. E uma vez que as pessoas de fora sabem, o desastre é irreversível. O rasgão é alargado mais e mais. O resultado, para quem está por baixo do pano, pode ser o pânico. Muitas pessoas reagem de maneira histérica: eu não tenho nada a ver com isso, eu não vivo aqui, eu só estava passando por esse lugar, entrei em baixo do pano para me abrigar da chuva, chove muito nesta cidade. Mas é tarde: todo o mundo quer agora levantar o pano para saber o que há por baixo dele.
O horror, enfim, o horror. Tudo que se pode fazer é esperar que, depois de levantado, caia novamente o pano e que a vida volte a ser o que era. Mas a vida por baixo do pano nunca mais será o que era.


O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.


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