UOL


São Paulo, domingo, 20 de abril de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

BRASIL JUVENIL

Estudo da USP e da Universidade de Londres mapeia transtornos na população brasileira de sete a 14 anos

Distúrbio mental afeta até 3,4 mi de jovens

ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL

Quase 3,4 milhões de crianças e jovens no Brasil podem estar sofrendo de problemas emocionais que exigem tratamento imediato, não necessariamente medicamentoso. Eis o alerta de uma pesquisa que a Universidade de São Paulo e a Universidade de Londres acabam de concluir.
O estudo, que nasceu em 1999, pretendia quantificar a ocorrência de transtornos psiquiátricos na população com idade entre sete e 14 anos. Para tanto, analisou 1.251 alunos de 22 escolas públicas e de quatro escolas privadas.
Os 662 meninos e as 589 meninas viviam em Taubaté -cidade paulista que abriga cerca de 244 mil habitantes. Os pesquisadores a escolheram pelo fato de exibir índices socioeconômicos similares aos de outros municípios das regiões Sul e Sudeste.
Nunca um trabalho do gênero no país se valeu de amostra tão extensa. A conclusão: 12,5% dos alunos examinados acusaram uma ou mais patologias.
Projetando a cifra nacionalmente, como é praxe em levantamentos epidemiológicos, os especialistas chegaram aos 3,4 milhões. Claro que o cálculo embute uma certa distorção -uma vez que a realidade de Taubaté não corresponde à da Amazônia ou à do agreste nordestino.
Mesmo assim, os cientistas julgam os 3,4 milhões um número representativo. "Superestimado não está. Arriscaria dizer justamente o contrário: talvez esteja um pouco aquém da verdade", defende a psiquiatra infantil Bacy Fleitlich Bilyk, 35, que coordenou o estudo na USP. O inglês Robert Goodman, também psiquiatra infantil, chefiou a empreitada em Londres, e o fundo britânico The Wellcome Trust bancou o custo de US$ 350 mil.
Bilyk argumenta que, se a amostra incluísse municípios menos prósperos, a taxa de 12,5% subiria -"já que a pobreza constitui um importante fator de risco para doenças psiquiátricas".
A porcentagem encontrada, de todo modo, é inferior à de um levantamento semelhante feito nos EUA. Supera, porém, as obtidas em investigações inglesas e indianas (veja quadro nesta página).

Brigas e furtos
Quem quiser comparar as constatações de Bilyk e Goodman com estatísticas oficiais enfrentará sérios percalços. O governo federal não possui dados precisos sobre o assunto. "Desconhecemos quantas crianças e adolescentes brasileiros padecem de distúrbios mentais", afirma o psiquiatra Pedro Gabriel Delgado, do Ministério da Saúde.
Não à toa, faltam no país serviços públicos que priorizem tal clientela. Apenas em 2002 é que surgiram os Centros de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenis. Com recursos do SUS, formam uma rede ainda tímida, que soma 32 ambulatórios, distribuídos por 12 Estados.
Para a maioria dos garotos que manifesta patologias daquela natureza e não pode frequentar clínicas particulares, sobram os postos de saúde. Ou, nos casos graves, os educandários gratuitos. "Em ambas as situações, o atendimento deixa muito a desejar", avalia Delgado.
Antes de Bilyk e Goodman explorarem o tema, o psiquiatra e epidemiologista Naomar de Almeida Filho -hoje reitor da Universidade Federal da Bahia- seguiu trilha parecida. Em 1981, numa comunidade pobre de Salvador, examinou 828 moradores que tinham entre cinco e 14 anos. O resultado da sondagem se revelou alarmante: 23% amargavam distúrbios emocionais.
Como o trabalho empregou critério diagnóstico de 1969, acabou envelhecendo. Já a nova pesquisa se baseia na CID-10 -a mais recente versão da célebre Classificação Internacional de Doenças, produzida pela Organização Mundial da Saúde.
Em Taubaté, os cientistas não acharam evidências de esquizofrenia, psicose maníaco-depressiva ou autismo. Mas identificaram outros cinco tipos de transtornos:
Os de comportamento - Afetavam 7% dos alunos. As vítimas demonstram agressividade intensa e desafiam constantemente as normas sociais. Provocam brigas, praticam pequenos furtos, enfrentam autoridades, maltratam animais, causam incêndios e utilizam armas.
"Não estamos, aqui, no terreno tão corriqueiro da revolta juvenil ou das birras de criança", esclarece Bilyk. "As patologias de conduta pressupõem algo bem mais severo, com danos consideráveis para o paciente e para aqueles que o cercam."
As ansiedades - Atingiam 5,2% dos estudantes. Incluem as compulsões e obsessões, as fobias (de altura, de avião, de chuva, de insetos, de multidão, de lugares abertos, de escola etc.) e o medo de se separar dos pais.
A hiperatividade - Acometia 1,5% da amostra. O quadro combina agitação em excesso, dificuldade para se concentrar e atitudes impulsivas.
A depressão - Afligia 1% dos meninos e meninas.
As disfunções alimentares - Apareciam em somente 0,2% dos analisados. Abrangem a anorexia nervosa, a bulimia e demais doenças associadas à culpa de comer.

Violência doméstica
De acordo com Bilyk, que atua no Instituto de Psiquiatria da USP, todos os tipos de transtorno dependem "de um tripé" para eclodir -a propensão genética, a maneira como a psique de cada pessoa se estrutura e motivações externas (ou ambientais). Entre as últimas, o estudo detectou pelo menos quatro.
"Presenciar ou sofrer violência doméstica, ter parentes próximos com problemas emocionais e estar sob os efeitos da pobreza aumentam a probabilidade de crianças e adolescentes desenvolverem algum distúrbio", adverte a pesquisadora. Ela também ressalta que, quanto mais cedo vier a ajuda, maiores as chances de cura.
Sem cuidados corretos, os males podem recrudescer e empurrar o paciente para o desemprego, o baixo desempenho escolar, o abuso de substâncias químicas e mesmo a criminalidade.
O tratamento varia muito. Em certos casos, bastam sessões psicoterápicas individuais e familiares ou programas educativos que ensinam pais e professores a lidar com a situação. Outras vezes, é conveniente o uso de remédios.

Texto Anterior: Urbanismo: Dinheiro chega, e São Paulo ganha nova iluminação
Próximo Texto: Abrigo de crianças busca prevenção
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.