São Paulo, domingo, 20 de novembro de 2005

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HISTÓRIA NEGRA

Área em Pirituba, zona norte da capital, pode ter servido de refúgio de escravos que escaparam de fazendas

Prefeitura investiga 1º quilombo paulistano

Tuca Vieira/Folha Imagem
Conceição Araújo da Silva, que mora na Vila Mangalot, em Pirituba, onde há indícios de ter existido um quilombo


FABIO SCHIVARTCHE
DA REPORTAGEM LOCAL

Cabelos branquinhos contrastando com a tez negra, dona Conceição já viu três gerações crescerem na Vila Mangalot. Seus olhos miúdos foram testemunha de amores, crimes e pecados. Viu também o asfalto e a luz chegarem a esse pedacinho de Pirituba, na zona norte de São Paulo, onde criou os filhos e os netos.
Agora, aos 67 anos, quando achava que "não tinha mais nada para acrescentar ao mundo", ela pode ser protagonista de uma importante revelação histórica: a descoberta de uma área remanescente de quilombo na região, o primeiro dentro da área ocupada hoje pela capital paulista.
Dona Conceição Aparecida Araújo da Silva será uma das testemunhas de uma investigação oficial aberta pela Prefeitura de São Paulo para apurar a existência de um quilombo na Vila Mangalot no século 19. "Quando eu ainda era uma menina encontrávamos correntes e grilhões quebrados atados a pedaços de pau no meio do mato. E ouvíamos histórias de nossos avós sobre a época da escravidão e o pessoal que fugia das fazendas para viver livres nessa área", conta.
Além do relato de moradores antigos, considerado um dos principais elementos na demarcação de áreas quilombolas no Brasil, há outras evidências que indicam a ocorrência de uma comunidade negra livre em Pirituba no século retrasado.
Uma delas é de caráter histórico. Documentos encontrados na USP (Universidade de São Paulo) revelam grande tolerância com os escravos por parte de Domitila de Castro Canto e Melo, a marquesa de Santos, dona da fazenda Anastácio, no alto do vale de Pirituba.
Conhecida como a mais famosa amante do imperador d. Pedro 1º, a marquesa tinha o hábito de fumar com os escravos nos fundos da fazenda, área onde teria funcionado o quilombo, afirma o sociólogo Edson Domingues, autor do pedido de tombamento do Casarão do Anastácio -hoje uma casa particular em ruínas, na esquina da marginal Tietê com a rodovia Anhangüera.
Outra evidência é a grande concentração de população negra na região, principalmente de idosos que vivem no local desde o nascimento. Não há um levantamento científico, mas uma visita ao local denota a diferença.
A Folha percorreu na semana passada as ruas que no passado teriam abrigado o quilombo. Em uma contagem feita pela reportagem durante 50 minutos, 45 dos 100 moradores que passaram nas ruas do bairro eram negros.
É uma média (45%) bem acima da aferida pelo IBGE (5%) em 2000 entre os 10,4 milhões de paulistanos -25% dos moradores da cidade se declararam pardos e 67%, brancos.
"Abrimos a investigação para confirmar se a área hoje ocupada pela capital teve um quilombo. A história de São Paulo tem de ser escrita com as cores reais de seus habitantes", diz Mario Cortez, coordenador de assuntos da população negra da prefeitura.
Nesta semana ele se reunirá com integrantes do Conpresp (órgão municipal do patrimônio histórico) e de universidades para discutir como será feita a investigação. "Vamos resgatar a história da comunidade negra na cidade", afirma o vereador Juscelino Gadelha (PSDB), conselheiro da Câmara Municipal no Conpresp.

Sem registro oficial
O cadastro divulgado em maio deste ano pela Universidade de Brasília apontou 2.228 comunidades remanescentes de quilombos no país. Vinte ficam em São Paulo, segundo o Itesp (Instituto de Terras do Estado de São Paulo).
A existência, no século 19, da comunidade negra em Pirituba é uma surpresa para moradores da região e também para historiadores e sociólogos entrevistados pela Folha -que, no entanto, apontam indícios que tornam verossímil sua ocorrência.
"Ainda que não haja provas, pesquisadores já apontaram a existência de pequenos quilombos na periferia da São Paulo antiga, área hoje englobada pela metrópole, principalmente no eixo que ligava a capital às plantações cafeeiras de Campinas [área que inclui Pirituba]", diz Cecília Helena de Salles Oliveira, do Museu Paulista da USP. "Mas não se preservou a história dos excluídos da cidade, como os escravos. E hoje quase não há vestígios para contar o que realmente aconteceu."
Relatos como o de dona Conceição são uma das principais fontes documentais em processos de comprovação de propriedade de terras para titulação de comunidades quilombolas. "A história oral é essencial nesses casos, pois constrói a genealogia necessária para recuperar o que aconteceu", afirma o antropólogo Dagoberto Fonseca da Unesp (Universidade Estadual Paulista).
"É preciso atentar também para a área mítica, que são os bens imateriais de um grupo, como a identidade com a terra", afirma.


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