São Paulo, segunda-feira, 21 de agosto de 2000


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MOACYR SCLIAR

O mistério do cemitério virtual

A criação de cemitérios virtuais foi mais uma moda que pegou na Internet. A rede tem cemitérios virtuais para todos os gostos e religiões. A sepultura virtual pode ser decorada com motivos de cenas da natureza. Informática, 16.ago.2000 N ão quero que fique qualquer traço de minha passagem pela terra, repetiu ele várias vezes durante a penosa doença que veio, afinal, a matá-lo. Compreensível amargura: afinal, morria jovem, numa idade em que outros estão apenas começando a viver.
Ela respeitou a vontade do marido. Mandou cremar o corpo e espalhou as cinzas num lago. Mas as saudades eram muitas e, quando ouviu falar do cemitério virtual, resolveu criar ali um túmulo que lhe lembrasse do falecido. Afinal, pensou, não se tratava de uma coisa real, material; era apenas uma extensão de sua imaginação, que sumia tão logo fosse o computador desligado.
O túmulo foi desenhado com a ajuda de um amigo, artista plástico, e ficou bonito. Tinha uma bela lápide, com poético epitáfio, e estava decorado com desenhos rústicos, bem de como ele gostava. Ela pagava ao site uma pequena quantia e poderia acessar a imagem quando bem desejasse. Fazia-o todos os dias; tornou-se para ela uma espécie de confortador ritual.
Um dia, a surpresa: alguém tinha colocado, junto ao túmulo, um buquê de grandes rosas vermelhas. O que a deixou intrigada, suspeitosa mesmo. Afinal, ele não tinha parentes nem amigos. Quem teria feito aquela intrusiva homenagem?
As flores apareceram várias vezes, o que a deixava cada vez mais desgostosa. Irritava-a, sobretudo, o anonimato da pessoa. Até que um dia apareceu a carta. Sinto muita falta de você, dizia a missiva, minha vida já não é a mesma depois que você se foi. E a assinatura: Lili. Seguramente um apelido ou pseudônimo.
Ela caiu em intensa depressão. Não tinha dúvida de que a tal Lili era uma amante secreta. Mesmo que não fosse, mesmo que se tratasse apenas de uma amiga, o simples fato de ele nunca se ter referido a ela já era uma traição, algo inadmissível: entre os dois, a franqueza sempre fora a regra.
Sofreu durante dias a fio. Por fim, ultrajada, tomou uma decisão: depois de consultar, por telefone, a administração do site, resolveu deletar o túmulo.
A visão panorâmica do cemitério virtual mostra agora, naquele mesmo lugar, um retângulo vazio. Isto é: quase sempre vazio. Porque, volta e meia, surge naquele lugar um buquê de grandes rosas vermelhas. Cartas não mais aparecem, mas não são necessárias: enquanto as flores ali estiverem, ela jamais terá repouso.

O escritor Moacyr Scliar escreve às segundas-feiras, nesta coluna, um texto de ficção baseado em notícias publicadas no jornal.


Texto Anterior: Líderes são militantes políticos
Próximo Texto: Tragédia em Perus: CPTM sabia que freio não funcionava
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.