|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MOACYR SCLIAR
O sequestrador sequestrado
Você vai trabalhar, você vai ajudar em casa, você vai dizer para seus amigos vagabundos que a folia acabou
|
Terminou o cárcere privado da mulher,
mantida refém pelo ex-marido, em Canoas, na região metropolitana de Porto
Alegre (RS). Inconformado com o fim do
relacionamento, o homem, armado com
um revólver calibre 38, invadiu a casa da
ex-mulher e a rendeu. O sequestro durou
cerca de 68 horas. O sequestrador se entregou.
Folha Online
QUANDO o ex-marido invadiu a
casa, armado de revólver, a
primeira reação dela foi de
terror. O homem jamais aceitara a
separação, sobretudo depois que ela
fora viver com outro companheiro;
mais, era um tipo violento, com várias passagens pela polícia, e que não
hesitava em usar sua arma.
Porém, à medida que as horas passavam, ela foi se acalmando. Em primeiro lugar ficou claro que o invasor
não estava tão transtornado assim;
não queria matar ninguém, não queria fazer mal aos filhos, que aliás liberou tão logo a polícia, avisada, cercou
a casa. E não queria, de modo algum,
se vingar. Tudo o que pretendia era
uma reconciliação: que a mulher
mandasse embora aquele a quem
considerava um intruso e que o recebesse de novo.
De início, ela não conseguia sequer
falar, tão apavorada estava. Mas logo
se deu conta de que um diálogo era,
sim, possível. Afinal, ele não estava
pedindo nada de absurdo. Tinham
vivido juntos muito tempo, e ela podia ainda recordar o fascínio que, no
começo do casamento, sentira por
aquele homem enérgico, decidido.
Com o tempo as coisas haviam mudando, sobretudo por causa do patológico ciúme que ele demonstrava.
Ela não aguentara mais e, mulher corajosa, intimara-o a deixar a casa. Depois conhecera outro homem, e pensaram em recomeçar a vida, mas a
verdade é que alguma coisa da antiga
paixão ainda restava.
E também alguma coisa, muita coisa, da antiga raiva. Era um arrogante,
aquele cara. Achava que todo o mundo tinha de se submeter à sua vontade, que podia dar ordens apenas porque empunhava um revólver. Uma
irritação foi crescendo nela, e lá pelas
tantas ela disse:
-Muito bem, se você quer conversar, vamos conversar. Mas você vai
ter de me ouvir. E fique sabendo que
eu tenho muito a lhe dizer.
Tinha mesmo: muitas queixas,
muitas reclamações, muitas recriminações. Você não passa de um egoísta, bradava a mulher, você queria
que eu cuidasse da casa, que lavasse
a roupa, que fizesse a comida, que
criasse nossos filhos, enquanto você,
que não estava nem aí para esses
probleminhas, saía com os amigos e
ia se divertir.
-Aguentei isso muito tempo, tempo demais. Até que me dei conta: você não passa de um boa-vida, de um
explorador. Agora você vem aqui, dizendo que quer recomeçar, por bem
ou mal, e não pergunta se eu estou de
acordo. Quer saber? Estou de acordo, sim. Você volta. Mas vai ser nos
meus termos. Você vai trabalhar, você vai ajudar em casa, você vai dizer
para seus amigos vagabundos que a
folia acabou, que de agora em diante
você é marido e pai de família, e só isso: marido e pai de família.
Riu:
-Será uma espécie de sequestro,
só que permanente.
Naquele momento tocou o telefone: era o negociador da polícia, querendo saber se o sequestrador se entregaria. Ele não hesitou: foi até a janela, jogou o revólver para fora e se
entregou. A mente dos sequestradores tem mistérios incompreensíveis.
MOACYR SCLIAR escreve nesta página, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na
Folha.
moacyr.scliar@uol.com.br
Texto Anterior: Para especialistas, simulador é só complemento às aulas Próximo Texto: A cidade é sua Índice
|