São Paulo, segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

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MOACYR SCLIAR

O sequestrador sequestrado


Você vai trabalhar, você vai ajudar em casa, você vai dizer para seus amigos vagabundos que a folia acabou


 


Terminou o cárcere privado da mulher, mantida refém pelo ex-marido, em Canoas, na região metropolitana de Porto Alegre (RS). Inconformado com o fim do relacionamento, o homem, armado com um revólver calibre 38, invadiu a casa da ex-mulher e a rendeu. O sequestro durou cerca de 68 horas. O sequestrador se entregou.
Folha Online

QUANDO o ex-marido invadiu a casa, armado de revólver, a primeira reação dela foi de terror. O homem jamais aceitara a separação, sobretudo depois que ela fora viver com outro companheiro; mais, era um tipo violento, com várias passagens pela polícia, e que não hesitava em usar sua arma.
Porém, à medida que as horas passavam, ela foi se acalmando. Em primeiro lugar ficou claro que o invasor não estava tão transtornado assim; não queria matar ninguém, não queria fazer mal aos filhos, que aliás liberou tão logo a polícia, avisada, cercou a casa. E não queria, de modo algum, se vingar. Tudo o que pretendia era uma reconciliação: que a mulher mandasse embora aquele a quem considerava um intruso e que o recebesse de novo.
De início, ela não conseguia sequer falar, tão apavorada estava. Mas logo se deu conta de que um diálogo era, sim, possível. Afinal, ele não estava pedindo nada de absurdo. Tinham vivido juntos muito tempo, e ela podia ainda recordar o fascínio que, no começo do casamento, sentira por aquele homem enérgico, decidido.
Com o tempo as coisas haviam mudando, sobretudo por causa do patológico ciúme que ele demonstrava. Ela não aguentara mais e, mulher corajosa, intimara-o a deixar a casa. Depois conhecera outro homem, e pensaram em recomeçar a vida, mas a verdade é que alguma coisa da antiga paixão ainda restava.
E também alguma coisa, muita coisa, da antiga raiva. Era um arrogante, aquele cara. Achava que todo o mundo tinha de se submeter à sua vontade, que podia dar ordens apenas porque empunhava um revólver. Uma irritação foi crescendo nela, e lá pelas tantas ela disse: -Muito bem, se você quer conversar, vamos conversar. Mas você vai ter de me ouvir. E fique sabendo que eu tenho muito a lhe dizer.
Tinha mesmo: muitas queixas, muitas reclamações, muitas recriminações. Você não passa de um egoísta, bradava a mulher, você queria que eu cuidasse da casa, que lavasse a roupa, que fizesse a comida, que criasse nossos filhos, enquanto você, que não estava nem aí para esses probleminhas, saía com os amigos e ia se divertir.
-Aguentei isso muito tempo, tempo demais. Até que me dei conta: você não passa de um boa-vida, de um explorador. Agora você vem aqui, dizendo que quer recomeçar, por bem ou mal, e não pergunta se eu estou de acordo. Quer saber? Estou de acordo, sim. Você volta. Mas vai ser nos meus termos. Você vai trabalhar, você vai ajudar em casa, você vai dizer para seus amigos vagabundos que a folia acabou, que de agora em diante você é marido e pai de família, e só isso: marido e pai de família.
Riu: -Será uma espécie de sequestro, só que permanente. Naquele momento tocou o telefone: era o negociador da polícia, querendo saber se o sequestrador se entregaria. Ele não hesitou: foi até a janela, jogou o revólver para fora e se entregou. A mente dos sequestradores tem mistérios incompreensíveis.

MOACYR SCLIAR escreve nesta página, às segundas-feiras, um texto de ficção baseado em notícias publicadas na Folha.

moacyr.scliar@uol.com.br



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