São Paulo, terça, 22 de abril de 1997.

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O paciente índio e os monstros da classe média

MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas

Se fosse filme e o paciente -o índio pataxó hã-hã-hãe Galdino Jesus dos Santos- fosse inglês, a guerra seria outra, glamourizada pela ficção, uma guerra mundial, igualmente sem sentido, mas de que o cinema ainda retira largos exemplos de solidariedade.
O filme mais premiado pela academia dos Oscars este ano foi ``O Paciente Inglês'', notório caso de solidariedade de uma enfermeira que abandona tudo para cuidar de um suposto soldado desconhecido, queimado dos pés à cabeça num acidente de guerra.
Mas o paciente índio que morreu na madrugada da última segunda-feira, queimado vivo por cinco rapazes de Brasília, é apenas crua realidade, de uma guerra bem nossa e atual: a guerra da imolação dos pobres. Galdino não foi queimado por ser índio ou negro, mas porque seria ``mendigo''. Seus assassinos são tão inconscientes que não distinguiriam um índio de um japonês.
Seus assassinos são apenas ``coisas'', que também o ``coisificaram''. Os cinco rapazes são exatamente filhos da ``nova'' classe média brasileira, essa que anda exibindo por aí o poder de adquirir coisas, muitas coisas, antes consideradas de luxo: um Honda Civic, uma picape, computador pessoal, TV a cabo, microondas, roupas de grife tipo Banana Republic, férias em Miami e, em Brasília, um poderoso adesivo de carro oficial de algum ministério ou procuradoria.
Coisas que atearam fogo numa outra coisa sem valor. Esse tipo de caráter que vai se formando bem no seio da juventude brasileira -esses delinquentes de classe média, esses ``valentões'' juvenis- seria chamado de ``o tipo da consciência coisificada'' por um teórico da educação, comparável à mentalidade nazista.
Somente uma sociedade sem valores, ou em que os valores se limitam às coisas materiais -sociedade que sobrepõe o capital e o lucro à pessoa humana, como disse recentemente a Igreja Católica em crítica ao neoliberalismo brasileiro-, somente essa sociedade de evidente degradação moral cria monstros como esses rapazes imbecis de Brasília.
Que tipo de formação eles recebiam em casa -um é filho de juiz, outro, parente de ministro- para se tornar esse lixo humano? Em que tipo de escola estudaram esses animais?
O fato de essa tragédia ter ocorrido em Brasília é apenas simbólico da nossa falta de moral. Afinal Brasília, construída para automóveis e não para a pessoa humana, é o centro da corrupção, da degradação e da impunidade nossa. Somos todos culpados da educação desses ratos de Brasília.
Em crônica genial chamada ``Brasília'', a escritora Clarice Lispector já entendia, décadas atrás: ``Brasília foi construída sem lugar para ratos. Toda uma parte nossa, a pior, exatamente a que tem horror de ratos, essa parte não tem lugar em Brasília. Eles quiseram negar que a gente não presta. (...) Mas os ratos, todos muito grandes, estão invadindo. (...) Brasília é o fracasso do mais espetacular sucesso do mundo. Brasília é uma estrela espatifada. Estou abismada.''

E-mail mfelinto@uol.com.br

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright 1997 Empresa Folha da Manhã