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O paciente índio e os monstros da classe média
MARILENE FELINTO
da Equipe de Articulistas
Se fosse filme e o paciente
-o índio pataxó hã-hã-hãe
Galdino Jesus dos Santos-
fosse inglês, a guerra seria outra, glamourizada pela ficção,
uma guerra mundial, igualmente sem sentido, mas de que
o cinema ainda retira largos
exemplos de solidariedade.
O filme mais premiado pela
academia dos Oscars este ano
foi ``O Paciente Inglês'', notório caso de solidariedade de
uma enfermeira que abandona tudo para cuidar de um suposto soldado desconhecido,
queimado dos pés à cabeça
num acidente de guerra.
Mas o paciente índio que
morreu na madrugada da última segunda-feira, queimado
vivo por cinco rapazes de Brasília, é apenas crua realidade,
de uma guerra bem nossa e
atual: a guerra da imolação
dos pobres. Galdino não foi
queimado por ser índio ou negro, mas porque seria ``mendigo''. Seus assassinos são tão inconscientes que não distinguiriam um índio de um japonês.
Seus assassinos são apenas
``coisas'', que também o ``coisificaram''. Os cinco rapazes são
exatamente filhos da ``nova''
classe média brasileira, essa
que anda exibindo por aí o poder de adquirir coisas, muitas
coisas, antes consideradas de
luxo: um Honda Civic, uma picape, computador pessoal, TV
a cabo, microondas, roupas de
grife tipo Banana Republic, férias em Miami e, em Brasília,
um poderoso adesivo de carro
oficial de algum ministério ou
procuradoria.
Coisas que atearam fogo numa outra coisa sem valor. Esse
tipo de caráter que vai se formando bem no seio da juventude brasileira -esses delinquentes de classe média, esses
``valentões'' juvenis- seria
chamado de ``o tipo da consciência coisificada'' por um
teórico da educação, comparável à mentalidade nazista.
Somente uma sociedade sem
valores, ou em que os valores
se limitam às coisas materiais
-sociedade que sobrepõe o
capital e o lucro à pessoa humana, como disse recentemente a Igreja Católica em crítica
ao neoliberalismo brasileiro-, somente essa sociedade
de evidente degradação moral
cria monstros como esses rapazes imbecis de Brasília.
Que tipo de formação eles recebiam em casa -um é filho
de juiz, outro, parente de ministro- para se tornar esse lixo humano? Em que tipo de escola estudaram esses animais?
O fato de essa tragédia ter
ocorrido em Brasília é apenas
simbólico da nossa falta de
moral. Afinal Brasília, construída para automóveis e não
para a pessoa humana, é o
centro da corrupção, da degradação e da impunidade nossa.
Somos todos culpados da educação desses ratos de Brasília.
Em crônica genial chamada
``Brasília'', a escritora Clarice
Lispector já entendia, décadas
atrás: ``Brasília foi construída
sem lugar para ratos. Toda
uma parte nossa, a pior, exatamente a que tem horror de ratos, essa parte não tem lugar
em Brasília. Eles quiseram negar que a gente não presta. (...)
Mas os ratos, todos muito
grandes, estão invadindo. (...)
Brasília é o fracasso do mais
espetacular sucesso do mundo.
Brasília é uma estrela espatifada. Estou abismada.''
E-mail mfelinto@uol.com.br
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