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SISTEMA PRISIONAL
Trabalho é incentivo para detentos em Hortolândia; eles ainda recebem salário e redução de pena
"Frenesi industrial" controla presos em SP
CÉLIA CHAIM
DA REPORTAGEM LOCAL
A indústria mais frenética de
Hortolândia, cidade distante 100
quilômetros de São Paulo, não
tem logotipo. Está situada no quilômetro cinco da rodovia Campinas-Monte Mor, a poucos minutos do centro. O turno de trabalho
vai das 7h30 às 16h30, com pausa
para o almoço.
A variedade de itens e os números da produção impressionam.
Por dia, são 40 mil cabos de panelas, 1.500 chupetas, oito toneladas
de chapas de ferro cortadas para
as maiores indústrias de elevadores (Otis, Atlas e Schindler), mil
unidades de cabos de telecomunicações, 6.000 pentes, flores de tecido, milhares de dúzias de pregadores de roupas, bolas de futebol,
até crucifixos de madeira.
Essa "heresia" industrial está
dentro de uma penitenciária, oficialmente chamada de Odete Leite de Campos Critter, mas conhecida como P2 (pelo fato de a cidade ter outros quatro presídios) e já
teve reconhecida a qualidade de
sua produção de cabos de extensão para sistemas de telecomunicação com a ISO 9002.
Os presos não avaliam a importância de seu feito: a ISO 9002 é
um passaporte de qualidade concedido pela International Organization for Standardization (Organização Internacional para a Normalização), instituição não governamental que elabora normas internacionais e tem sede em Genebra, na Suíça.
É ali que José Thomaz Celidônio, 42 anos, psicólogo, diretor
por cinco anos da P3 antes de ser
conduzido à direção da P2 em julho do ano passado, tenta, por
meio do trabalho, recuperar 900
presos punidos com prisão em segurança máxima.
Eles roubaram, furtaram, cometeram homicídios e crimes hediondos. São brancos e jovens
com menos de 30 anos, em sua
maioria. O que o psicólogo Celidônio faz por eles é tentar qualificá-los em alguma profissão para
saírem da prisão com uma opção
além do crime.
Com o apoio de empresas, em
geral terceirizadas, 82% dos 900
presos da P2 trabalham em período integral, em troca de um salário médio de R$ 120 (e máximo de
R$ 250) e da redução da pena assegurada pela regra de que a cada
três dias de trabalho tira-se um
dia da pena.
TV e bombom
O dinheiro é pouco, mas dá, em
alguns casos, para ajudar a família, em outros para comprar uma
televisão para a cela (que é ocupada por seis presos) e em todos para usar o pecúlio e, uma vez por
mês, comprar bombom (o da caixa azul da Nestlé é o preferido) e
"prestobarba", na verdade, o aparelho de barbear da Bic que eles
chamam pelo nome do produto
da concorrente Gilette.
O pecúlio é uma conta que os
presos têm na Nossa Caixa Nosso
Banco, de onde a direção do presídio, com uma contabilidade rigorosa, tira o dinheiro para as
compras que chegam toda a primeira sexta-feira do mês. Quem
não trabalha nas "fábricas" trabalha na manutenção do presídio.
São 178 presos que cozinham, se
ocupam da rejeitada "marinha"
como são chamadas as atividades
com água (lavar panelas, verduras
etc.), cuidam das instalações do
prédio e até constroem suas próprias grades para as unidades de
produção ao ar livre, como a de
ensacamento de areia e a construção de lareiras e churrasqueiras.
São grades que lembrariam o
alambrado de uma quadra de
basquete não fossem os pesados
portões à altura de uma prisão de
segurança máxima, como é classificada a P2. Apesar disso, o local
não cumpre todos os requisitos
(as celas não são individuais, o
corpo de guarda tem cerca de metade do número de presos quando deveria ser igual, as muralhas
são inadequadas ao padrão de segurança máxima).
Custo menor
Aos trabalhadores da manutenção são destinados 15% do salários dos presos operários. À penitenciária, o aproveitamento dessa
mão-de-obra tradicionalmente
desocupada significa uma redução no custo médio mensal de cada preso, de R$ 650 para R$ 450.
Para a indústria que se beneficia
dessa mão-de-obra caprichosa e
barata, a redução de custos é extraordinária. Exemplo: um preso
ganha R$ 0,60 por cada 50 dúzias
de pregadores que faz; o comércio
vende a R$ 0,70 a dúzia.
Há quem reclame discretamente pelo exagero do lucro desfrutado pelo fabricante. O que, pelo
exemplo do pregador, é justo.
Mas isso é tudo o que a direção do
presídio vem conseguindo com as
empresas. "Felizmente", diz o diretor, lembrando que o trabalho
ao preço que for é a melhor opção
disponível para devolver alguma
dignidade ao preso.
Os que trabalham no corte das
chapas de ferro para a empresa
Cisan, fornecedora da indústria
de elevadores, têm seguro pelo
risco que enfrentam. Os presos relutam em se identificar, mas não
escondem o orgulho ao saber que
alguém, fora dali, usa alguma coisa que eles produzem.
"Você tem uma panela com esse
cabo?", pergunta com entusiasmo
um deles.
Se o dinheiro não é justo e a remissão de pena é uma visão da liberdade em conta-gotas, ainda
ainda assim os trabalhadores da
P2 de Hortolândia têm um consolo no trabalho: o que Daniel, 25
anos de idade e 13 anos e quatro
meses de pena, faria 24 horas por
dia nos seis metros quadrados
que lhe cabem de uma cela? Onde
estaria o orgulho de Adilson Bento da Silva, que começou como
varredor e hoje é encarregado da
manutenção de seis tornos e 22
furadeiras? Como estaria a cabeça
de Anésio, 67, que de velhinho
dócil só tem a expressão do rosto?
Ele murmura num tom inaudível o artigo do código penal que
infringiu e o melhor, para sua sobrevivência, é que ninguém escute mesmo. Embala pentes na P2 e
de lá não deve sair tão cedo.
O diretor da P2 sabe que seu trabalho, por mais eficiente que seja,
não vai resolver os problemas sociais que criam todos os dias novos Anésio, Adilson, Daniel, José
Carlos etc. "Quero que eles saíam
daqui com um ofício, com alguma qualificação para tentar começar uma nova vida", diz Celidônio. Evitar que eles surjam, diz,
não é tão simples como aumentar
o policiamento e construir novos
presídios. "Exige uma política social verdadeira."
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