São Paulo, domingo, 22 de abril de 2001

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SAÚDE

Justiça paulista decide que a Souza Cruz terá de provar que não foi o cigarro que levou dona-de-casa a perder um braço

Indústria do fumo terá de provar inocência

MARIO CESAR CARVALHO
ENVIADO ESPECIAL A SÃO JOSÉ DOS CAMPOS

"Mãe, cadê o outro braço?"
"O bicho comeu."
"Que bicho?"
"O bicho-papão."
 

Bicho-papão, todo mundo sabe, não existe. A dona-de-casa Lúcia Helena Paulino de Oliveira, 34, usa a figura que assombra o imaginário das crianças sempre que precisa explicar ao filho Flávio, 3, por que teve de amputar o braço esquerdo pouco abaixo do ombro. Para a Justiça, a conversa é outra. Lúcia dá os nomes, endereço e CGC do bicho-papão que, segundo ela, lhe devorou o braço: Hollywood, Continental, Arizona, Derby, Plaza e Belmonte, todos cigarros produzidos pela Souza Cruz, que ela fumou dos 11 aos 28 anos, quando seu braço esquerdo começou a gelar.
Lúcia teve uma doença rara: tromboangeíte obliterante. O nome complicado designa um mal em que coágulos (chamados pelos médicos de trombos) entopem as artérias, dificultando a circulação sanguínea; com o tempo, a irrigação precária pode provocar a morte do órgão.
O caso mais célebre dessa doença foi exibido na TV no ano passado. Era uma contrapropaganda de cigarro do Ministério da Saúde, protagonizada por um jornalista que perdera as duas pernas em decorrência de uma tromboangeíte, chamado José Carlos Gomes. Ele morreu em outubro do ano passado, aos 64 anos. Estava cego e "gemia dia e noite de dor", segundo sua filha Luciana.

Alguém precisa pagar
Como não encontrou outra causa para a doença, Lúcia atribui ao cigarro o braço perdido. Para reparar o mal que sofreu, ela entrou na Justiça com um pedido de indenização à Souza Cruz por "danos morais". Sugere que a empresa lhe pague R$ 630 mil, o equivalente a 3.500 salários mínimos.
"Minha vida mudou demais depois da amputação", diz. "Não frequento mais shopping, não vou mais à piscina, não vou à praia. Mal consigo andar na rua. A criançada aponta e fala: "Olha lá a mulher sem braço!". Sempre gostei de me arrumar, mas não consigo mais olhar no espelho. Me sinto meia mulher. Alguém precisa pagar por tudo isso."
Seis meses depois de iniciada a ação, Lúcia obteve uma decisão que os advogados da Adesf (Associação em Defesa da Saúde do Fumante), que a defendem, classificam de "histórica": a Souza Cruz terá de provar que não foi o cigarro que provocou a tromboangeíte que provocou a amputação.
"É uma decisão histórica porque, de agora em diante, todo fumante que entrar com uma ação contra uma fábrica pode pedir que a indústria prove que não foi o cigarro que causou determinado mal", diz Luiz Mônaco, diretor jurídico da Adesf.
No jargão jurídico, essa figura é chamada de inversão do ônus da prova. Está prevista no Código de Defesa do Consumidor sempre que há um desnível flagrante entre as partes -como é o caso da Souza Cruz, uma indústria que lucrou R$ 494 milhões no ano passado, e uma dona-de-casa que vive numa casa de fundos de São José dos Campos, a 91 km de São Paulo, cujo marido, um fiscal de segurança, ganha R$ 800 por mês.
A Souza Cruz reconhece que o cigarro é um "relevante fator de risco para a tromboangeíte", como diz o seu gerente jurídico, Antonio Rezende, 36, mas nunca a sua causa. A companhia vai recorrer ao STJ (Superior Tribunal de Justiça) contra a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo.
A ciência não pode ajudar muito nessa disputa. A causa da tromboangeíte é desconhecida, segundo Newton de Barros Jr., 48, professor da disciplina cirurgia vascular na Universidade Federal de São Paulo, a antiga Escola Paulista de Medicina.
"O fumo não pode ser considerado como causa direta de tromboangeíte, mas como um fator desencadeador muito importante", diz Barros Jr. Nos pacientes que param de fumar, a doença evolui de modo muito mais lento, segundo ele.
Os dados estatísticos sobre a tromboangeíte obliterante, descrita pela primeira vez em 1879, também são inconclusivos. Sabe-se que atinge preferencialmente homens brancos com menos de 45 anos.

Era bonito fumar
Não fosse a doença, Lúcia teria um histórico corriqueiro de fumante. Ela conta que começou a fumar aos 12 anos, incentivada pelos colegas de classe. "Todo mundo fumava na escola. Era bonito. Quem não fumava, era chamado de careta", relata.
No início, comprava cigarros avulsos, um, dois, raramente três. Aos 14 anos, quando começou a trabalhar como operária numa fábrica de calçados, aderiu aos maços. "Eu vinha a pé para casa no maior sol. Economiza o dinheiro do ônibus só para comprar cigarro", diz. Pouco mais de um ano depois, já fumava entre um maço e um maço e meio por dia.
Os primeiros sintomas da tromboangeíte apareceram em outubro de 1995, segundo Lúcia. "Meus dedos começaram a formigar. Minha mão parecia uma pedra de gelo. A pontinha dos dedos ficava roxa. Tinha de pôr a mão na água quente para parar de doer", lembra. Com o aumento da dor, uma consequência da falta de circulação de sangue no braço, Lúcia diz que passou a fumar dois maços por dia.
Não que ela não soubesse que o cigarro só piorava sua doença, diagnosticada logo que sentiu os primeiros sintomas. "O problema é que eu não conseguia largar o cigarro. O médico mandava e eu não conseguia. Fumei até um ano depois de meu braço ter sido amputado", conta.
O caso de Lúcia foi galopante. Do diagnóstico à amputação, decorreram seis meses. Em 21 dias, ela passou por quatro cirurgias, feitas para tentar restabelecer a circulação em seu braço. Todas fracassaram.
"Após as cirurgias, meu braço apodreceu. Eu não sentia mais a mão. Doía muito. Eu chorava, tomava morfina e meia hora depois a dor voltava. As enfermeiras ficavam rezando porque não tinha mais nada a ser feito. Elas rezavam, e eu pedia para cortarem o meu braço", diz.
No dia 10 de abril de 1996, os médicos fizeram a amputação. O marido de Lúcia, Flávio Aparecido de Oliveira, 30, foi encarregado de levar o braço para ser enterrado no cemitério de Itanhandu, no sul de Minas, onde Lúcia nasceu: "Foi a coisa mais horrível do mundo. Nunca mais esqueço essa cena. Parecia um filme de terror", compara o marido.
Lúcia conta que demorou dois anos para se livrar da sensação de que o braço amputado continuava lá. Hoje, precisa de ajuda para tarefas corriqueiras, como passar manteiga no pão ou amarrar os cadarços do tênis. Não pode usar braço mecânico porque a tala que o prendia prejudicava a circulação do braço que lhe restou.


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