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URBANISMO
Segundo corretor, mais da metade dos compradores de imóveis na região são gays ou travestis; shopping impulsionou "boom"
Região da Frei Caneca vira "point" GLS
MARIO CESAR CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL
O corretor de imóveis J.C.S., 27,
descobriu que a velocidade das
vendas de um prédio na rua Frei
Caneca, na região central de São
Paulo, duplicava quando fazia
propaganda não em supermercados e academias de ginástica, como sempre fez, mas em bares,
boates e saunas gays.
O sucesso da estratégia do corretor tem uma razão simples: a região da Frei Caneca converteu-se
numa área GLS (iniciais de gay,
lésbica e simpatizantes), cujo epicentro é o shopping homônimo e
se estende até a avenida Paulista e
parte dos Jardins. Na subcultura
GLS, em que tudo e todos têm
apelido, o shopping virou "Gay"
Caneca ou Frei "Boneca".
Mais do que ponto de encontro,
o shopping impulsionou um
"boom" imobiliário na região: depois que foi anunciada a sua construção, no início do ano 2000, foram lançados 43 projetos imobiliários num raio de até dez minutos a pé em torno do centro comercial. Desses, só cinco não estão prontos, segundo pesquisa da
administração do shopping.
"A gente não tem preconceito,
mas eu nunca tinha visto uma
clientela como essa: mais da metade dos compradores são gays ou
travestis", diz outro corretor,
M.L.G., 34. Outros quatro corretores entrevistados pela Folha
têm uma estimativa parecida, de
que cerca da metade dos novos
moradores são GLS.
Mais liberdade
Não é novidade que shoppings
quase sempre provocam uma explosão imobiliária. Também não
há nada de novo no fato de gays
morarem no centro de São Paulo
-isso ocorre pelo menos desde o
final do século 19, segundo o historiador americano James Green,
autor do livro "Além do Carnaval", sobre a história da homossexualidade masculina no Brasil.
Àquela época, eles frequentavam
a região do vale do Anhangabaú;
depois, foram migrando para a
praça da República e para a Vieira
de Carvalho, onde vivem até hoje.
A psicóloga Adriana Nunan, 27,
que faz doutorado sobre preconceito contra gays, diz que é comum que pessoas com o mesmo
estigma se juntem para viverem
longe dos preconceitos mais comezinhos. Foi o que ocorreu no
Village, em Nova York, em bairros de San Francisco ou em parte
de Ipanema, no Rio. "O positivo
desses lugares é que eles significam mais liberdade. Ali, eles fazem coisas que não fariam em outra parte da cidade", diz.
O que está ocorrendo na Frei
Caneca é um fenômeno duplo: 1)
como há muitos gays, há mais
aceitação de comportamentos
que não são aceitos por todos, como dois homens andando de
mãos dadas; 2) com a construção
de prédios mais caros e a vinda de
moradores com um pouco mais
de dinheiro, o perfil da região está
mudando.
A Frei Caneca, paralela à rua
Augusta, é um corredor de ligação
entre uma área mais degradada,
próxima ao centro, e a avenida
Paulista. A porção mais pobre é
ocupada há duas décadas, pelo
menos, por travestis, prostitutas e
gays -é o lado mais selvagem da
rua. A inauguração do shopping,
em maio de 2001, trouxe uma população diferente para a área.
Mais dinheiro
"A Frei Caneca mudou", diz Celina Oliver, 24, "a miss São Paulo"
dos travestis, como ela anuncia.
"Agora, só vem bicha rica para
cá." Os lançamentos imobiliários
justificam a impressão de Celina:
apartamentos com um dormitório na região custam cerca de
R$ 100 mil; os de dois, chegam a
R$ 150 mil. Os gays que compram
são de classe média, segundo os
corretores.
O perfil dos frequentadores do
shopping confirma a impressão
de mudança. Eles têm idade média de 32 anos e renda familiar de
R$ 4.900 (a média na cidade é de
R$ 1.900); 65% têm curso superior, 60% têm computador em casa e 36% são solteiros.
A frequência ao shopping mostra o crescimento por que passa a
região. Em maio de 2001, foram
280 mil visitantes; dois anos depois, esse número chegou a 553
mil -um crescimento de 97,5%.
Por conta desse aumento, o shopping será ampliado.
É óbvio que essa frequência não
é só GLS, mas o perfil do shopping
ajuda a explicar a escolha dessa
tribo. O Frei Caneca tem umas
das melhores salas de cinema de
São Paulo, exposições de fotos e
uma escola de teatro, entre outras
atrações culturais.
"O nosso shopping não é GLS
nem é um shopping cultural, mas
nós fomos escolhidos por esse público por causa da cultura, sobretudo pelo cinema. Esse pessoal é
muito sensível e tem bom gosto",
diz Wilson Belizaro, 49, superintendente do shopping.
Marconi, 23, um estudante de
cursinho que se define como simpatizante de gays e lésbicas, diz
que mudou para a região em busca da comodidade de viver perto
de cinema e escola, mas também
para fugir do preconceito que enfrentava na zona leste. "No Tatuapé, não dá para levar uma vida
normal", reclama.
A publicitária Angelina Ogato,
22, diz que a tribo GLS gosta da
Frei Caneca porque ali não precisa se esconder. "Você já viu dois
homens de mãos dadas no Pão de
Açúcar ou no Extra? No supermercado daqui você vê quase todo dia", exemplifica.
Esse tipo de região tem seus riscos, segundo a psicóloga Adriana
Nunan. A área pode virar um gueto, com todas as implicações negativas que isso significa: isolamento, ilusão de liberdade e falta
de trocas com o resto da cidade.
"A reunião de grande número de
gays numa única área é uma fase
de quase toda cidade e mostra que
lá há tolerância." A existência de
um enclave gay, porém, expõe a
persistência da intolerância. O
ideal, segundo ela, é que ruas como a Frei Caneca pudessem existir em qualquer lugar da cidade.
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