São Paulo, quarta, 22 de julho de 1998

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OPINIÃO
Os médicos e a indústria

PEDRO PAULO MONTELEONE

A criminosa onda de medicamentos falsos traz à tona a omissão histórica das autoridades em fiscalizar o setor e punir bandidos e levanta discussões sobre o papel da indústria farmacêutica no país.
A demora de alguns laboratórios em reconhecer publicamente a falsificação ou o roubo de produtos e em recolher imediatamente lotes suspeitos demonstra que o setor vê o medicamento apenas como um bem de consumo, que visa o lucro. A preservação da imagem da empresa e o possível impacto negativo nas vendas importam mais que a vida dos cidadãos.
Essa desumanidade, traduzida em um marketing agressivo e milionário, há muito tem como alvo principal os médicos. A propaganda de divulgação dos remédios, incluindo técnicas pouco éticas de convencimento, representa 20% das despesas da indústria -três vezes mais do que é gasto com pesquisa de novos produtos.
Segundo estudos do professor José Augusto Cabral de Barros, da Universidade de Pernambuco, no Brasil, os laboratórios chegam a gastar US$ 8.000 por ano para cada médico. Isso inclui visitas de propagandistas, amostras grátis, balangandãs de toda espécie, financiamento de congressos e publicações médicas, passagens e hospedagem em eventos no exterior (às vezes incluindo as despesas do cônjuge) e até isenção de anuidade em cartão de crédito.
Quanto aos médicos formadores de opinião, pesquisadores, professores renomados e gestores de políticas públicas, o assédio é diferenciado, bem mais sedutor.
A intenção explícita da indústria de influenciar a prescrição do médico já ultrapassou os limites da ética. Os congressos médicos têm se transformado em festas, feiras e bingos dos laboratórios. Não raro, até a programação científica dos eventos é manipulada pelo patrocinador. Juntem-se a isso as deficiências de formação do médico em farmacologia, a ausência do farmacêutico e a "empurroterapia" nos balcões das drogarias e temos como resultado o uso irracional de medicamentos, tão grave quanto o de produtos inócuos.
O Brasil é hoje o sétimo e mais promissor mercado farmacêutico do mundo. Comercializa 5.000 produtos, emprega 50 mil pessoas e movimenta por ano US$ 6 bilhões, sendo que 80% desse faturamento está nas mãos do oligopólio das multinacionais. Mas apenas 20% da população consome, indiscriminadamente, 60% da produção de fármacos do país.
A questão dos remédios falsos não deve ser tratada só como caso de polícia, mas como indicador de necessária e ampla revisão da nossa política de medicamentos. A vida da população e o exercício ético da medicina estão em jogo.


Pedro Paulo Monteleone, 57, é professor-adjunto de obstetrícia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp/EPM) e presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CRM-SP)



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